Aproveito uma recente dúvida para retomar questões que vêm à tona em algum momento, de forma inexorável, sempre que o assunto é língua portuguesa. A primeira delas é: estabelecida uma escala de avaliação cujos extremos poderiam ser, respectivamente, duas quaisquer imagens correspondendo uma ao inferno outra ao paraíso, onde se encaixa o Português falado no Brasil?
Para produzir uma resposta objetiva faz-se necessário usar alguns argumentos históricos, ainda que os estudos diacrônicos não sejam o meu forte nem expliquem, como alguns possam pensar, a maioria das idiossincrasias de uma língua. O fato é que a Língua Portuguesa, ao passar a ser usada em terras de Vera Cruz, passou, igualmente, a fazer eco a seres humanos vivendo numa outra realidade.
No continente americano, essa língua passou a existir não apenas longe do seu berço geográfico e do primeiro contingente humano que nela havia crescido e através dela se tornado uma comunidade em sentido amplo, com implicações sociológicas, psicológicas e todas as conseqüências que daí surgem de forma concreta ou abstrata, mas também passou a receber insumos de outras naturezas e a responder a solicitações ocasionadas por outras realidades quotidianas.
A palavra insumos, escolhida não de forma aleatória nem inocente, faz pensar na agricultura. E esse campo temático é uma maneira possível de metaforizar o fenômeno lingüístico de que nos ocupamos aqui, bem como as circunstâncias que o envolveram.
Na agricultura há uma produção que depende de algumas variáveis e algumas constantes. As constantes, no caso, seriam as espécies, propriamente ditas, a serem produzidas e certos procedimentos básicos que não variam de forma drástica de um local para o outro como a necessidade de solo de qualquer tipo, de água e de se respeitar prazos entre preparação do solo, plantio, crescimento e colheita. As variáveis são de todo o tipo e não sendo eu profissional da terra, mas das letras, prefiro passar diretamente à transposição da imagem para o campo da linguagem.
A Língua Portuguesa era a espécie que se plantou, intencionalmente ou não, em solo americano, já que no século XVI ainda não existia o Brasil seja geográfica, política ou socialmente. Assim, inicialmente, apenas transplantou-se para um terreno diverso uma parte da população que já falava a língua, com seus hábitos culturais e seu imaginário.
Nesse primeiro momento, a variável, nada negligenciável, consistia nas novas necessidades de denominação que o ambiente circundante impunha; nas peculiaridades tecnológicas de um mundo desprovido da intervenção humana num enfoque europeu da época. E os insumos ficavam por conta do contato gradativo dessa população européia com os grupamentos humanos que povoavam o novo mundo ou que vieram a povoá-lo a seguir.
Os grupamentos humanos que os primeiros portugueses encontraram e com os quais continuaram a ter contato nos séculos seguintes representavam não só uma nova cultura, mas uma forma diferente de expressar a realidade mesmo em aspectos que co-ocorriam nas duas culturas, como necessidades básicas do ser humano, relações familiares, culinária. Mesmo aspectos tão básicos eram, não apenas, objeto de designações diferentes pela diversidade lingüística, como também eram vividos de forma diversa pelos grupos humanos nativos e pelos europeus.
Aquilo a que se chama comumente de choque cultural tem conseqüências irreversíveis na linguagem de ambas as comunidades. Há, até hoje, uma língua franca usada predominantemente no Norte do Brasil que se chama a “Geral”. Essa língua franca originou-se na “Língua Geral”, espécie de crioulo que foi, durante um tempo considerável, o instrumento de comunicação em toda a costa brasileira.
A Língua Geral é uma mistura da língua dos Tupinambás, do tronco Tupi, com o Português. Inicialmente, a Língua Geral era a língua dos Tupinambás pura e simplesmente, usada por diferentes grupos indígenas para se comunicar entre si. Essa língua foi se modificando com o tempo, influenciada pelas mudanças sociopolíticas, bem como pela presença de novas etnias, brancos europeus e negros africanos, no mesmo espaço físico.
Foi a Língua Geral que os jesuítas utilizaram na catequese dos índios e que os portugueses, vindos para o Brasil sem família, usavam para se comunicar com as suas famílias indígenas, uma vez que passaram a viver com mulheres índias e a ter filhos. O padre José de Anchieta publicou uma gramática, em 1595, intitulada Arte de Gramática da Língua mais usada na Costa do Brasil.
Em 1618, publicou-se o primeiro Catecismo na Língua Brasílica. Um manuscrito de 1621 contém o dicionário dos jesuítas, Vocabulário na Língua Brasílica. No século XVII, a língua brasílica passa a ser conhecida como “Língua Geral”. É preciso, porém, distinguir duas Línguas Gerais no Brasil Colônia: a paulista e a amazônica. A primeira delas deixou marcas importantes no vocabulário popular brasileiro em uso até os dias atuais (nomes de coisas, lugares, animais, alimentos etc.). A segunda é usada ainda hoje para comunicação no Norte do Brasil, sendo a língua materna das populações caboclas e de grupos indígenas que perderam suas línguas originais.
Maiores detalhes podem ser encontrados no sítio: http://www.socioambiental.org/website/povind/index.html
Rosa Virgínia Mattos e Silva nos informa, ainda, de que foi somente no século XVIII que o Português se definiu como língua dominante no Brasil, vindo a se afirmar no século seguinte como língua nacional pela instalação, no Rio de Janeiro, da família real portuguesa, a partir de 1808.
A “Geral” seria o ponto mais extremo de um contínuo onde se situam todas as variedades de Português faladas hoje no Brasil, extremo no sentido de afastamento da norma gramatical aceita dos dois lados do Atlântico e objeto de acordos que nunca terminam.
Por outro lado, os dados acima servem de base histórica a uma reação instantânea de rejeição da minha parte quando ouço pessoas afirmarem que a principal diferença entre o Português falado hoje no Brasil e aquele que se fala em Portugal deve-se ao fato de que naquele há a permanência da variedade falada pelos portugueses na época do descobrimento, século XVI, portanto.
Trata-se, em geral, de pessoas que se interessam, sem dúvida, pelo fenômeno lingüístico sem, contudo, fundamentarem suas afirmações em leituras embasadas em pesquisa concreta e dados históricos, mas, sobretudo, em deduções subjetivas.
Ao mencionar, aqui, a Língua Geral pretendo, por um lado, trazer à tona um dado que fica, muitas vezes, esquecido nas discussões sobre as prováveis origens da diferença entre o Português falado no Brasil e aquele falado em Portugal. Pretendo, com isso, mostrar que não faz muito sentido referir-se ao Português falado no Brasil “na época do descobrimento” como se lê tantas vezes.
Além disso, e talvez mais importante, é necessário ter em conta as diferenças marcantes no mundo circundante que se fizeram sentir desde o primeiro momento em que falantes de português puseram os pés neste continente. Nesta terra que hoje, para deleite de tantos de nós, se expressa, em sentido amplo, na mesma língua que Camões e Pessoa.
Terra essa cujos habitantes podem ler e se deliciar tanto com um autor como com o outro, o que, por si só, já basta para provar que, afinal, falamos a mesma língua ainda que num ritmo e com estruturas diferentes, mas não incompatíveis com o sistema vigente que faz com que seus produtos atendam prontamente aos padrões e critérios que determinam ser esta uma variedade da Língua Portuguesa.
Feita a menção ao período do contato inicial da Língua Portuguesa e seus falantes com a terra que acolheu tanto uma, quanto os outros, resta traçar, ainda que de forma incompleta, linhas gerais sobre os aspectos em que a Língua Portuguesa falada no Brasil estabeleceu padrões divergentes da norma inicial gerada no seio da comunidade de falantes que se concentram na Península Ibérica.
Tentarei, igualmente, delinear, com exemplos, como alguns aspectos dessa norma inicial foram cedendo lugar a novas interpretações e usos diversos, até que com o desenvolvimento das reflexões nas várias áreas das ciências da linguagem, essas novas interpretações e usos ganharam defensores na academia, uma vez que já há muito se haviam constituído como fatos na boca, ouvidos e olhos leitores dos falantes.
Não tentarei, no entanto, defender a validade de nenhum desses fatos. Nem, tampouco, encontrar-lhes justificativas, pretendo apenas trazer à luz fatos que passam, muitas vezes, despercebidos até mesmo dos próprios usuários da língua. Quem sabe, assim, falantes de um lado e de outro do Atlântico e de variadas latitudes, onde se incluem os africanos, nossos irmãos lingüísticos, poderemos enxergar uns aos outros com mais tolerância e menos beligerância. Poderemos, então, saborear a possibilidade que nos é oferecida de ver o mundo dos outros, sob outros olhos, mas lendo no mesmo código ainda que organizado de forma “prodigiosamente criativa” como escreveu a equipa editorial do Ciberdúvidas, num achado extremamente feliz e amistoso.