1. O que há muito designei como a «doença infantil do novo Europeísmo Português» (também designável como a «atitude do bom aluno» ou o «provincianismo de imitação e alienação» ou a «dependência passiva e corruptiva dos fundos» e designações e atitudes quejandas), que tem caracterizado a “política” dos governos de Portugal, é tão patética e pateta como a cegueira de todos aqueles que, por razões nacionalisto-patrioteiras ou outras, pretendem afastar Portugal da Europa e da União Europeia, fora das quais Portugal não tem existência nem salvação.
Como disse lapidarmente o Presidente da República Jorge Sampaio, «Portugal não tem futuro fora do quadro europeu», embora seja essencial acrescentar imediatamente que, no quadro europeu, Portugal também não tem futuro fora doutros quadros, designadamente fora do “quadro lusófono”. E nem sequer se trata de ser Europeu e Lusófono mas sim de ser Europeu enquanto Lusófono e de ser Lusófono enquanto Europeu.
A nossa classe política e designadamente o nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros ainda não conseguiram minimamente entender e praticar o historicamente óbvio. Espero, pelo contrário, que uma das estrelas “europeístas” (ou já nem tanto?) do momento, Ernâni Lopes, não queira dizer outra coisa ao insistir, simultaneamente, no «hipercluster dos oceanos» e no «triângulo Europa-Brasil-África» como vias insubstituíveis para o pleno desenvolvimento estratégico de Portugal.
2. Que Portugal não tem futuro fora da Europa e da União Europeia aí estão a demonstrá-lo todo o seu passado dos últimos séculos (passado de afastamento da Europa, de obscurantismo, de provincianismo e de subdesenvolvimento) e todo o seu passado recente de global modernização (que vai muito para além dos “fundos estruturais e de coesão” visíveis nas auto-estradas e demais grandes obras que mudaram a geografia de Portugal). Aliás, se Portugal é geograficamente a “cabeça” e o “rosto” da Europa, conforme os versos de Camões, e de Pessoa, porque haveria de não ser, à sua maneira, sociologicamente, economicamente, politicamente, culturalmente Europeu este «jardim da Europa à beira-mar plantado» (Tomaz Ribeiro)?
3. A União Europeia é, essencialmente, a concretização do que poderíamos chamar o “ideal europeu” consubstanciado na dupla do “desenvolvimento económico-social” e da “democracia político-partidária” que, utilizando as palavras de Sartre, parecem exprimir o «horizonte inultrapassável do nosso tempo» e o objectivo desejado de todos os povos da terra.
É este “ideal” ou “projecto” ou “modelo” europeu do binómio Desenvolvimento e Democracia (também traduzível no Programa da Modernidade ou na Declaração dos Direitos Humanos) que constitui a riqueza e originalidade da União Europeia, que a mesma não deve abandonar ou abastardar seja a que pretexto for e é neste “ideal” ou “projecto” ou “modelo” europeu que o 25 de Abril de 1974 (com os seus famosos “DDD” programáticos da “Descolonização-Democratização-Desenvolvimento”) permitiu que Portugal se reinserisse depois de séculos de letal afastamento, que configurou a desgraça e o tormento dos Portugueses e aquilo que a primeira das Conferências Democráticas de Antero de Quental tornou famoso ao diagnosticar As causas da decadência dos Povos Peninsulares nos últimos séculos!
4. O momento actual das discussões e decisões sobre as chamadas Convenção Europeia, Constituição Europeia, Federação Europeia e semelhantes é também o momento em que, por um lado, Portugal deve aprofundar a sua europeidade (sem ilusões sobre a sua influência no curso dos acontecimentos, se se limitar ao peso dos seus argumentos europeus “na balança da Europa”: o ridículo não matará, mas não deixa de ser ridículo ter pretensões e fazer ameaças estilo SEDES e outros “prometidos manifestistas” valentões, que até se poderiam tornar perigosas se viessem a transformar-se nos álibis da praxe) e, por outro lado, redescobrir que o seu peso real e também e designadamente o seu peso real europeu depende essencialmente do facto de ser também extra-europeu, podendo mesmo afirmar-se que um Portugal exclusivamente Português, exclusivamente Europeu ou exclusivamente Lusófono nem sequer Português, Europeu ou Lusófono é!
5. A aclamada «dimensão marítima de Portugal» e o aclamado «regresso de Portugal ao mar» tanto podem indicar uma grande e insubstituível via de progresso do «Portugal Europeu» (um autor, Virgílio de Carvalho, até já cunhou a expressão felícissima da «Descoberta do Caminho Marítimo de Portugal para a Europa!») nos seus variados aspectos (até geográficos: bastará pensar na grandeza territorial do País, se se incluir a sua zona marítima exclusiva!) como uma falácia a que ultimamente têm recorrido os “inimigos da Europa” e os “amigos da América” com um (trans)atlantismo que tresanda a NATO, a Guerra Fria, a luta contra o eixo franco-alemão, etc...
Em tudo isto, muitos não deixarão de felicitar-se que ao menos o Português e Europeu António Vitorino se tenha livrado ou o tenham livrado da honra do presente envenenado do Secretariado-Geral da NATO...
Que, em todo o caso, nunca deixe de ser dita uma coisa que deveria ser de uma clareza meridiana para todos os Portugueses: tal (trans)atlantismo, hoje na moda e até oficial, nada tem a ver com o Atlântico que Fernando Pessoa tão belamente cantou como o Mar Português ou com os Mares nunca dantes navegados da epopeia de Camões ou com as tão líricas palavras «Da nossa língua vê-se o mar!» de Vergílio Ferreira... e que eu próprio já designei como o «Mar Lusofonês»...
6. Embora se possa e eventualmente até se deva chamar também a atenção para vertentes que nada têm de antieuropeias e de antiportuguesas antes pelo contrário (por exemplo, a “vertente ibérica”, a “vertente mediterrânica”, a “vertente africana”, a “vertente latino-americana”...), é a “vertente da Lusofonia” que constitui a 'conditio sine qua non' para que a ainda por vezes chamada “integração europeia de Portugal” apareça em toda a sua essencialidade, em toda a sua pertinência e... em toda a sua urgência, para Portugal, para a Europa e para todos os Países e Povos de Língua Portuguesa.
7. Mais que projecto ou questão cultural e até linguístico-literária (acabe-se, por exemplo, definitivamente com fórmulas como “Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa”), a Lusofonia é, obviamente, um projecto ou uma questão de Língua e, embora talvez menos obviamente, também e até sobretudo um projecto ou uma questão de desenvolvimento economológico e de estratégia geopolítica.
8. Como projecto ou questão de língua, a Lusofonia tem de ser encarada, antes de mais, como a justa avaliação e a consequente valorização da Língua Portuguesa no mundo contemporâneo. Foi, aliás, neste sentido que, na minha Carta Aberta ao Presidente Lula, me permiti chamar a atenção para o facto de o Espaço Lusófono utilizar uma mesma língua, a qual, muito mais que a Última flor do Lácio, inculta e bela, segundo os famosos versos de Olavo Bilac, é hoje, objectivamente e segundo a não menos famosa profecia de Fernando Pessoa, «uma das poucas línguas universais do século XXI» (enquanto língua falada em todos os Continentes e com um grande País, o Brasil, seu falante), podendo tornar-se um instrumento inigualável de comunicação e de desenvolvimento entre os homens.
Assim entendida, a Língua Portuguesa poderá e deverá tornar-se uma das grandes (senão a maior das) riquezas de todos os Países e Povos da CPLP. e todo o investimento na sua cultura e difusão aparece como o investimento mais inteligente e mais rentável.
Por exemplo, o mínimo de inteligência (até económica) que os Estados Lusófonos poderiam e deveriam mostrar era assegurar a existência de Professores da Língua Portuguesa em todos os Espaços do Espaço Lusófono e no máximo possível de Espaços do Mundo Contemporâneo ou, ultrapassando os ridículos preciosismos e provincianismos das guerras do alecrim e da manjerona das suas “Academias” e dos seus “intelectuais”, legislar o cumprimento de um Acordo Ortográfico lusófono (o agora proposto ou outro, mas que seja!), prova dos nove de qualquer lusofonia da língua, tanto no âmbito dos espaços lusófonos como fora deles e acautelar a utilização da Língua Portuguesa em todos os lugares e encontros internacionais (políticos, turísticos e quaisquer outros!), não permitindo, sob nenhum pretexto, que uma das línguas mais faladas do mundo seja constantemente reduzida ao lugar e papel de uma língua insignificante.
E bastaria dar alguns exemplos grosseiramente caricatos como os seguintes: na cerimónia em que o então considerado melhor futebolista do mundo (Ronaldo, lusófono) recebeu do então presidente da FIFA (João Havelange, lusófono), sob os olhares do considerado melhor futebolista de sempre (Pelé, lusófono), o respectivo prémio, alguém ouviu uma palavra em Português?
E que dizer quando, entrevistado em Paris, o luso futebolista Figo ou, quando em conferência de imprensa no Porto, o luso treinador Carlos Queiroz tentaram exprimir-se em Espanhol, embora não ultrapassassem as fronteiras do...”espanholês”?
E como entender que o Brasil permita que os media internacionais digam sempre Mercosur e não Mercosul, embora seja ele o membro principal e o principal motor de tal organização?
E será que, a nível da América do Sul, as potencialidades gigantescas do Português-Brasileiro não conseguirão impor-se ao Espanhol sul-americano, de modo que, num futuro mais ou menos breve, se venha a falar, em todas essas paragens, muito menos o “portunhol” do que o “espanholês” ou, melhor ainda, se venha a falar, simplesmente e sem nenhum constrangimento, o Português do Brasil?
9. É enquanto projecto de geostratégia política e de desenvolvimento economológico que a Lusofonia tem a sua primordial razão de ser, para realização própria de Portugal e de todos os Países e Povos Lusófonos e como contributo para a realização do «Fenómeno Humano» universal. Para a descoberta e a prática sadias e descomplexadas desta vertente geopolítica e socioeconómica da Lusofonia, essencial é o recurso permanente a uma “Crítica da Razão Lusófona”, a qual, à semelhança do que o filósofo Kant pretendeu fazer tanto para a “Razão Pura” como para a “Razão Prática”, estabeleça as condições de legitimidade, de possibilidade, de necessidade e de urgência da construção da Lusofonia, que, também Kantianamente, poderiam intitular-se de “Prolegónemos a toda a Lusofonia Futura”. Aqui e agora, limitar-me-ei a remeter para o meu opúsculo Para Uma Crítica da Razão Lusófona, Edições Universitárias Lusófonas, 2000, onde, com alguma extensão, exponho os meus comentários críticos relativos aos casos da lusofonia de Portugal, do Brasil, dos países africanos e asiáticos de Língua Portuguesa, de todas as diásporas lusófonas, sem esquecer a lusofonamente hetero e auto-esquecida Região da Galiza, de algum modo a origem e a mãe de todas as Lusofonias.
10. Uma tal Lusofonia, um tal Espaço Lusófono e uma tal CPLP em nada se opõem, antes pelo contrário, não só ao diálogo omnitotidimensional com os outros espaços humanos e geopolíticos do mundo contemporâneo como também, especificamente, aos reais ou eventuais processos em curso da “mercosulização" ou até "alcaização" do Brasil (desde que respeitando as soberanias de todos, Lula 'dixit'!), da Aliança Mercosul-União Europeia (tão desejável, tão dificultada por Bruxelas e tão mal entendida por Lisboa!), da Integração Europeia de Portugal (desde que ultrapassando a referida «doença infantil» do novo luso europeísmo), das várias Integrações Regionais dos Países e Povos Africanos e Asiáticos de Língua Portuguesa, de todas as aculturações das diásporas de todos os Lusófonos e da globalização societal à escala planetária, opondo-se, sim e frontalmente, à loucura terrorista e à histeria antiterrorista que o dia 11 de Setembro de 2001 desencadeou nos Estados Unidos e na Humanidade e que, uma e outra, constituem, por razões diversas mas com possíveis idênticos resultados, sérias ameaças de regresso à barbárie, mediante o incumprimento ou o esquecimento da tão longa e tão difícil conquista que foram o Estado democrático de Direito e o primado do Direito Internacional sobre a força bruta bem como da única e para todos (“terroristas”, “não-terroristas” e “antiterroristas”, incluindo qualquer potência ou superpotência de ontem, de hoje ou de amanhã) obrigatória “Carta Magna” da Civilização que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
11. Até agora já se fizeram e continuam a fazer-se muitos e mais ou menos belos discursos sobre a Europa, o “Mar Atlântico” e a Lusofonia; o que interessa, porém, através de pertinentes e permanentes “Críticas da Razão Europeia, da Razão Transatlântica e da Razão Lusófona” é, contra todos os provincianos europeísmos, transatlantismos e “lusofonismos”, começar a realizar a União Europeia e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assegurando assim o futuro de Portugal.
Cf. Conceito de Lusofonia, de Maria Sousa Galito.