Quando o escritor acredita que o que escreve é a sua missão mais importante no mundo, terá o mesmo destino de Sísifo e vê-se condenado a empurrar pela montanha acima uma sempiterna pedra que nunca deixará de rolar pela montanha abaixo. Tudo isso, porque, na verdade, o seu objetivo é o de criar com voz de divindade. Uma necessidade de espírito que procura ganhar forma, uma espécie de ato germinativo que se propaga nas páginas de um livro e se multiplica tantas mais vezes quantas as que o texto for lido.
A sua mais profunda missão é a de saber tornar verdadeira a humanidade, e isso nunca terá fim.
De onde surge esse poder? Como lhe acontece?
Vergílio Ferreira, in Pensar (2013), explica-nos: «Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Concentram-se, fazem um esforço de contensão beata e lá conseguem. Esperam a graça e às vezes ela vem. Escrever é orar sem um deus para a oração. Porque o poder da divindade não passa apenas pela crença e é aí apenas uma modalidade de a fazer existir.»
Criar, transfigurar, cheirar as nuvens
Os escritores têm os sentidos muito desenvolvidos. Veem, observam, pasmam-se. Tudo isto para criar, para transfigurar, ouvir as almas silenciosas, cheirar as nuvens, ver a doçura dos caramelos, sentir o calor gélido da guerra.
Gabriel García Márquez, in Eu não Venho Fazer um Discurso (2015), realça o prazer da conceção, essa gravidez do texto que se concebe como se fosse um corpo humano: «Porque o mais delicioso da história é concebê-la, ir arredondando-a, dando-lhe voltas e mais voltas, de maneira que na altura de nos sentarmos a escrevê-la já não nos interessa muito, ou pelo menos a mim não me)interessa muito.»
Mia Couto diz, in Pensatempos (2005), que «o segredo do escritor é anterior à escrita.» «Está na vida, está na forma como ele está disponível a deixar-se tomar pelos pequenos detalhes do quotidiano». Ou seja, o escritor tem de ser forte, porque naquilo que escreve tem de caber tanto a beleza da vida como a sua selvajaria. Tem de caber a guerra, o sofrimento e a compaixão. O leitor tem de ser consciencializado.
«Escrevemos porque não queremos morrer»
Jean-Paul Sartre, in Situações II (1968), considera que escritor escolheu a revelação do mundo e especialmente a revelação do homem aos outros homens para que estes adquiram, em face do objeto assim desnudado, toda a sua responsabilidade. Na escrita, tem de caber todo o corpo humano: veias, cabeça, ouvidos. Eis o poder demiúrgico do escritor: ele demonstra, mostra, retrata, transforma. Transfigura. Ele comove, emociona, educa, critica. E a sua divindade consegue ter uma alma tão humana quanto a do belíssimo livro de poesia de Maria do Rosário Pedreira, O meu corpo humano (2022): «É o meu corpo / humano: vê, ouve, / toca, pensa e / dói-lhe. / Volto porque preciso que me amem.»
Talvez seja esse amor eterno que busca o escritor, porque lhe dói não ser ouvido, porque lhe dói ser esquecido, pois ele sabe que, um dia, vai morrer.
Foi o que, em 1993, Saramago confidenciou ao jornal de Las Palmas, La Provincia: «Escrevemos porque não queremos morrer. É esta a razão profunda do ato de escrever.»