«(...) Quantos destas gerações anémicas de cultura terão direito a descobrir os violinos e as violas braguesas, os recos e também os pianos e o baixo, os sons de alguns sintetizadores, as másculas baterias desta e daquela música de Fausto? Quem ouvirá a introdução operática de A Memória dos Dias, desse alquímico disco de 87? (...)»
Vamos ouvir Fausto, hoje, neste "Directo à Leitura"? Vamos. Os meus olhos são vaga-lumes / “inquietos num claro vazio / vacilam em noites suicidas / insinuam despedidas / à deriva meu navio / amanhã não sei o / que virá / o que será / dá saudades minhas lá no bairro / Cara-Linda / vou partir como um condenado / amargo e / desfuturado / achincalhando no fundo / e ao chegar à beira mundo / abrir então os meus braços // p´ra me lançar no espaço / Vou-me rir muito / vou gozar mais / vou cantar o sol-e-dó / perder-me em doses fatais / tu vais ver só / o pé de vento que se vai levantar / comigo a rodopiar! E vamos ver-nos nessas músicas que são retratos nossos, desde o século XVI até a este tempo em que ainda um de nós há-de ser feliz - por um triz!
Isto é: vamos pensar um pouco sobre a grande arte do autor de Por Este Rio Acima, um dos álbuns mais maravilhosos do nosso património musical e, estou em crer, do património musical ibérico (e, hélas!, europeu). Sim: europeu. Houvesse algum rasgo de criatividade, alguma ousadia e cultura por parte dos nossos políticos e, em vez da patológica e alienante entrega do país ao mito Cristiano Ronaldo, seriam os raros, mas verdadeiros criadores de uma forma de expressão portuguesa de existir, quem essa massa informe de governantes citaria, lembraria, divulgaria.
Imagine-se o que não seria se, a reboque de um encontro dos PALOP, ou da CPLP, ou a propósito de efemérides, ou porque faria sentido condenar esta Europa do Dinheiro e da Guerra, um primeiro-ministro (todos sempre tão caudalosos nos discursos sobre o futebol), ou um ministro da Educação, ou da Cultura, falasse deste ou daquele músico, deste ou daquele livro, de teatro, de cultura! Citando bem e de cor, como esse Gilberto Gil que, quando ministro do Brasil, até tocou música na ONU, imagine-se alguém que ao exercício da política desse certa aura, certa urgente magia!! Romantismos, pois claro… idealismos. Mas nada disso importa, na verdade. A política passará. A arte e quem a faz ficam. É o caso de Fausto Bordalo Dias, cuja discreta presença na cultura portuguesa – na música, mas não só – deveria merecer uma enorme divulgação. Não esperemos que os nossos políticos ignorantes, na sua larga maioria, saibam como projectar alguma vez a nossa cultura para além dos futebóis fáceis das bandeirinhas provincianas na lapela dos blazers Armani. Esta ideologia oca desvitaliza-nos. Morreu um dos nossos mais originais músicos. Poucas palavras se disseram. Uma música passou aqui e ali. Numa estação de rádio ouviu-se durante um dia o que não se ouviu durante décadas…
É que, dos bancos das escolas aos bancos das universidades, das esplanadas da pátria aos universitários praxistas que ululam selvaticamente nas ruas das cidades e se rebolam nos jardins desta ou daquela alameda, dos jotinhas futuros vampiros da política aos aspirantes a milionários (é o dinheiro o único fito deste nosso tempo português), perguntemos: quem hoje, entre os 15 e os 35 anos ouviu Fausto? Não os Capitão Fausto! Mas o músico Fausto – o autor do incomparável O Despertar dos Alquimistas, o recriador do romance de Garrett, A Nau Catrineta? Fausto, o do poema Mariana das Sete Saias.
Atolados num rectângulo onde só importa pagar o imposto, fazer o empréstimo e ver o Mendes do «Ist’é’um ‘spectáculo!» ou regurgitar com a telenovela Cacau (o português que ali se fala é de uma artificialidade e incompetência à prova de bala!), ou ficar perplexo perante os indigentes do Casados de Fresco (o país real vai todo ali cair e revela a nossa miséria moral), que podem as artes? De que vale a palavra educação? Das novas gerações que por aí ouve música nos festivais «super isto» e «super aquilo», ou perde-se na educação do ouvido no «Festival Sound qualquer coisa», quantos saberão ouvir, com Fausto, os tambores e tamboretes, as pandeiretas e acordeões, as flautas transversais? Quantos algum dia comprarão um álbum onde os coros e a voz de Fausto se cruzam com os cavaquinhos, as guitarras e sininhos da boa música portuguesa antiga e sempre nova? Quantos, para além de ouvirem as Taylor Swift do hodierno, irão alguma vez espantar-se com as trompas, os adufes, e os pauliteiros que ouvimos em diversos trabalhos deste compositor maior? Quantos destas gerações anémicas de cultura terão direito a descobrir os violinos e as violas braguesas, os recos e também os pianos e o baixo, os sons de alguns sintetizadores, as másculas baterias desta e daquela música de Fausto? Quem ouvirá a introdução operática de A Memória dos Dias, desse alquímico disco de 87? Essa música, em particular, com cerca de 13 minutos de duração, deveria passar repetidas vezes para sensibilizar novos e velhos. Tão magistral e emocionante é o seu caudal de vozes, a arquitectura das suas mágicas sonoridades, o terno léxico seleccionado («deixo-te uma palavrinha / para te lembrares de mim»), pergunto-me como seria se Fausto fosse espanhol, francês, brasileiro. Dada a deseducação que grassa em Portugal, quem um dia se lembrará de dar aos mais novos o grande quadro português que é o álbum de 1982, Por Este Rio Acima e onde podemos ler trechos da obra de Mendes Pinto a partir dos quais se escreveram as letras dessas canções?
Compete-nos, portanto, a nós, a cada um de nós (daqueles que ainda tenham memória, ou daqueles que, mais jovens, queiram ainda saber e saibam sentir) ir à procura das palavras e ritmos do enorme criador de Crónicas da Terra Ardente e reconhecer nele, a par de Zeca e de José Mário Branco, um dos mais sortílegos cantautores. «O melhor de todos nós», disse dele Zé Mário Branco. Ler e ouvir Fausto Bordalo Dias e atentar no modo como, em clave intertextual, as suas letras são tão ou mais poéticas que as de Chico Buarque ou de Caetano Veloso. Um volume, em livro, dos poemas de Fausto, isso não se impõe? E, através da sua palavra culta, reler e ouvir Todo este céu ou a belicosa Os Soldados de Baco desse álbum de 1994. Com a música de Fausto, ouvindo Ali Está a Cidade, leremos em todas as suas letras uma ancestralidade nossa, poética, porque a palavra ascende ao grau da beleza mais aurífera («Ali está a cidade / trémulos olhos na noite / toda em cimento se ergue / à tona dos desperdícios / como um monstro incandescente / faz-se de bela deitada / espapaçada na lama»).
Lisboa «com guitarras à janela», mas também a visão pícara dos portugueses nos brasis e nas ásias, sem esquecer o retrato irónico-decadente dos «Afonsos e Albuquerques» de outrora antecipando a visão alegórica de um poema como Foi Por Ela, a música deste cultor de Mnemósine versa sobre o amor e é intervenção política contra os mandos e desmandos de Bruxelas e de uma Europa vendida.
Em 1987 ouvi, lembro-me bem, Fausto cantando O Coça Barrigas. Portugal ali representado, como só mais tarde pude compreender. Riso, nostalgia, inteligência, sensibilidade, nós estamos nas músicas de Fausto Bordalo Dias e se amanhã não sabemos o que virá, o que será; se ao chegarmos à beira do mundo iremos um dia abrir os braços para os espaços, será ainda com esta banda sonora que podermos dizer que «bate forte meu coração / salta fera encurralada». Isto tem de ser assim, até porque todos temos «o corpo esquinado» por causa desse desfuturante futuro (o nosso presente) que Fausto leu como ninguém.
Cf. Fausto Bordalo Dias (1948-2024), o homem que cantou o presente encostado à História + Fausto, o músico que nasceu no mar e seguiu sempre pelo seu rio acima + O que fica de Fausto na história da música portuguesa? + Grande foi a viagem, Fausto...+ Fausto e “O Barco Vai de Saída” + David Ferreira: «Fausto surpreendeu por se sentir surpreendido pelos outros, pelos livros que lia, pelos tempos que mudavam.»
Artigo do professor, poeta e ensaísta português António Carlos Cortez, transcrito, com a devida vénia do Diário de Notícias de 6 de julho de 2024. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945 .