Sobre os sinais de sobrevivência da 2.ª pessoa do plural em português europeu — um artigo de Ana Martins no semanário Sol.
O leitor também deve ter recebido na sua caixa de e-mail: um "postal" com duas velhinhas de lenço e avental, sentadas numas escadas exteriores de granito, com um portátil no regaço. Alguém inseriu na fotografia balões de falas, como na BD, mas não precisava: a imagem faz (sor)rir só pelo desajuste de realidades.
Não correu caixas de correio electrónico, mas o discurso do bispo do Funchal tem um travo de anacronismo que em muito se aproxima do contraste mostrado na tal fotografia: «Vós, que estais acostumados aos novos saberes da moderna cultura digital, nos vossos contactos partilhai, com alegria, o jubiloso anúncio pascal. Lançai uma 'onda positiva', partilhando mensagens de ânimo e coragem, alegria e esperança, amizade e união (...)» (Lusa, 11/04/09). Ou seja, «ide, fazei pios downloads e sede bons bloggers».
O efeito de desajuste está, claro, a cargo do uso da 2.ª pessoa do plural: «o dinossauro "vós"», como lhe chamou Sírio Possenti (Malcomportadas Línguas, Criar Edições).
Vulgarmente dado como um caso de variação diatópica, isto é, como um hábito linguístico característico dos falares das gentes do Minho, do Douro Litoral e da Beira Interior, a verdade é que o uso do vós pode também figurar como um exemplo de variação diastrástica (variação ao longo dos estratos sociais), dado que ele está vivo em certos círculos da cultura religiosa e católica.
A imagem pode ter muito impacto, mas os óculos, o bigode e o fato pretos de nada valiam a Diácono Remédios (personagem de Herman José) sem a flexão do verbo na 2.ª pessoa do plural: «Continuai, mas com cuidado.»