«(...) O normal e o natural, como sabemos, andam associados no discurso normativo. Inversamente, o anormal tem uma conotação negativa, não raro insultuosa. (...)»
A palavra ‘normal’ pode ser usada de formas diferentes. Às vezes dizemos que uma coisa é normal simplesmente para dizer que é comum, que costuma acontecer em certo tipo de situações. Outras vezes, para afirmar que é mesmo assim que deve ser; isto é, num sentido normativo (“O normal é os juízes não darem entrevistas”). É frequente as duas aceções surgirem misturadas, até pela nossa tendência em achar que, se determinadas coisas são de determinada maneira há muito tempo, haverá bons motivos para isso, portanto é mesmo assim que elas devem ser.
Esta versatilidade semântica permite a ‘normal’ ser usada para aplanar uma grande variedade de embaraços. Um governante apanhado a aproveitar um benefício paralelo que, no mínimo, dá mau aspeto – digamos, um passeio turístico oferecido por uma grande empresa –, alega invariavelmente que a prática é normal, que é ‘tradicional’, se ‘enquadra nos usos sociais', etc. Do mesmo modo, um funcionário que recebe um subsídio de habitação concebido para servidores públicos que mudam regularmente de residência, apesar de viver no mesmo sítio e em casa própria há muitos anos, considera a situação normal. Afinal, ele e os colegas habituaram-se a ver o subsídio como parte da remuneração fixa e o facto de outros funcionários menos poderosos terem perdido subsídios igualmente antigos não os comove. É normal cada um tratar de si, e o normal num país como o nosso é quem tem meios de pressão levar a sua avante e os outros não.
‘Normal’ também serve para desdramatizar. Esta semana, um antigo ministro da Saúde que só conseguiu ser eleito para o Conselho Económico e Social à segunda tentativa garantiu não estar magoado: “Sou profundamente crente na democracia. Foi um processo normal e natural”. Normal e natural é uma combinação redundante, que visa enfatizar a ideia expressa mas, ao fazê-lo, derrama alguma dúvida sobre ela. O tipo de formulação que uma pessoa tende a usar para arrumar de vez a questão, com terceiros e consigo mesma.
O normal e o natural, como sabemos, andam associados no discurso normativo. Inversamente, o ‘anormal’ tem uma conotação negativa, não raro insultuosa. Se quisermos evitá-la, podemos optar pela palavra ‘anómalo’, aparentemente mais neutra, embora com uma etimologia mais sugestiva, numa direção algo inesperada.
N. E. (25/11/2016) – O professor Guilherme de Almeida lembra que normal tem também usos mais especializados, no seguinte comentário (mantém-se a ortografia utilizada, anterior ao atual acordo ortográfico):
«O autor aborda o uso da palavra normal, mas fica-se pelo uso gramatical comum e pelo sentido corrente. Ora, para além de tudo isso, a palavra normal tem mais dois significados nos quais o autor não toca:
1. Normal como sinónimo de perpendicular; dois exemplos:
a) uma força normal a uma superfície significa que essa força é perpendicular a essa superfície, ou seja, actua perpendicularmente essa superfície (na Física);
b) a normal é uma recta perpendicular a uma superfície óptica (terminologia habitual na óptica geométrica).
2. Normal como valor padrão ou valor de referência; dois exemplos:
a) o valor da pressão atmosférica normal é 101 325 Pa, entendendo-se que é um valor de referência e não um valor habitual do dia-a-dia;
b) condições normais de pressão e temperatura*: pressão correspondente a 760 mm de mercúrio e temperatura de 0 ºC, não sendo estes obviamente valores "normais" no sentido corrente do termo; quem achará normal vir à rua com 0 ºC ?
*Conhecidas pela sigla abreviada PTN.
Outra fonte: normal no Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora.»
N. E. (28/11/2016) – Nova achega do professor Guilherme de Almeida ao tema da palavra normal: «Sobre o uso da palavra normal, há ainda a considerar que se chamavam liceus normais aos liceus onde se fazia o estágio dos futuros professores, sob a orientação de professores mais antigos e experientes, de competência reconhecida, então denominados professores metodólogos. Por exemplo, a actual Escola Secundária Pedro Nunes era um liceu normal, mais propriamente o Liceu Normal Pedro Nunes. Mais uma vez, aqui está novamente o uso da palavra normal para designar «padrão», «referência». Informação aqui.