(Prolonguemos o cliché do título até à primeira frase do texto.)
E se um desconhecido lhe disse «Tens de pagar uma propina!», isso é… Antes de concluir o que quer que seja, avalie se está no Brasil ou em Portugal! Para os brasileiros, uma “propina” é uma forma de suborno e, em Portugal, é o pagamento de uma matrícula no Ensino Superior.
Perante esta duplicidade, geradora de potenciais embaraços, imediatamente entra em cena o senso comum que afirma de forma inesperada, como é seu hábito: «A língua portuguesa é muito traiçoeira!» Neste momento, poderíamos todos anuir e seguir a nossa vida sem pensar mais no assunto. Um provérbio é sempre uma boa estratégia de fechamento de conversa e esta crónica malnascida ver-se-ia aqui mal-acabada.
Mas hoje não nos fiquemos pela tradição, porque, nestes assuntos, se há um inocente é mesmo a língua. Esta limita-se a ser composta por signos linguísticos que, na verdade, só significam aquilo que a comunidade quiser, os significados mais não são do que meras convenções que criamos, aceitamos e ajudamos a conservar. Para concretizar esta ideia, eis uma história escrita (com alguma ajuda) por um menino que frequenta o 3.º ano:
«Na quinta do senhor Manuel, está um burro que fica sempre quieto. Limita-se a comer e a observar os outros animais que estão em seu redor. Mais não quer ou não consegue fazer. Quem nunca está quieto é a cabra, que saltita constantemente de lugar em lugar, incomodando todos os animais e interrompendo o ruminar da vaca que só quer comer e descansar. Até um camelo lá está, sempre distante dos outros, não olhando para ninguém, enquanto exibe, com orgulho, as suas bossas. Por lá, passa, de vez em quando, um melro, que aparece apenas quando lhe convém e, diz-se, até cobras lá vão, mas permanecem escondidas e só se mostram quando ninguém conta com elas.»
Bucólica e desinteressante narrativa… Para remediar o mal, peço-vos agora que considerem que esta mesma história foi escrita pelo(a) vosso(a) colega mais malicioso(a). Imaginem que esta se inicia não por «Na quinta do senhor Manuel», mas por «No café da praça, na mesa dos fundos…», e não, não se trata de uma fábula. Desta feita, o singelo e desinteressante parágrafo transforma-se, não por milagre mas por ação da exploração dos sentidos das palavras, num texto maledicente e virulento que deixou de falar de animais para aviltar pessoas através da exploração de sentidos estereotipados: “burro” é aquele a quem falta inteligência; “cabra” é uma rameira; “vaca”, uma desavergonhada; “camelo”, um cretino; “melro”, um espertalhão; “cobra”, uma pessoa má.
As palavras não são boas nem más. Simplesmente, não são. Já os seres humanos encontram formas engenhosas de agredir sem usar a força, e a linguagem serve fielmente este fim. Os sentidos resultam de uma construção coletiva que carrega de fel ou de mel as palavras. E por esta razão beata nem sempre é ponta de cigarro, batata nem sempre é tubérculo, preto nem sempre é cor, calhau nem sempre é pedra. Pelas mesmas razões, há palavras excomungadas que não devem ser verbalizadas, palavras F***, M*** ou P***, e quem ousar desrespeitar a interdição sofrerá as consequências. Os tabus são assustadores e quem os desafia é um herói… ou um malcriadão!
Cf. Palavras tabu e eufemismos nos dicionários de Bento Pereira e Rafael Bluteau, Como inventar um palavrão?, 20 insultos inconvenientes (e pouco conhecidos…)