Alguns exemplos de porque é que não basta saber os significados das palavras e das frases para saber comunicar eficazmente (um artigo de Ana Martins no Sol).
Já se sabe: um indivíduo pode conhecer a gramática de trás para a frente, pode conhecer os termos mais arrevesados do dicionário e não conseguir interpretar o que lê. Porquê? Porque as palavras e as frases não são signos neutros nem etiquetas que se colem às coisas. Palavras e frases dão sempre testemunho de contextos e cenários, tensões e intenções que, em diferentes discursos e épocas, envolveram o seu uso.
É por isso que a acção — tão propalada agora — de defesa e promoção da língua portuguesa tem de ir muito mais além do que a simples vigilância sobre a invasão de estrangeirismos ou sobre ofensas à integridade ortográfica e morfológica de uma dada palavra. É que uma língua é sede de uma memória colectiva, porque nela se projectam vozes que noutros discursos e noutras ocasiões se fizeram ouvir.
Não se consegue entender cabalmente o Dom Quixote de la Mancha sem se ter lido, pelo menos, um breve excerto de um romance de cavalaria. Os Lusíadas é um livro do outro mundo para os alunos do 9.º ano, porque eles nunca leram uma linha de uma obra da Antiguidade Clássica (ainda que adaptada).
Mas veja-se que, na essência, essa repescagem de outros ditos e de outras vozes ocorre com as paródias que animam o discurso dos jornais. As vozes invocadas podem ser as mais variadas. Podem ser gafes de jogadores de futebol: «Resultados só mesmo depois de acabar a votação» (Público 4/11/08). Podem ser títulos de filmes: «2009 será o ano de todos os divórcios» (Expresso, 6/12/08); «Licença para poluir» (Público, 11/12/08). Mais raro é o caso do recurso a passagens célebres de obras literárias de referência: «Um Governo medíocre sob o manto espesso da propaganda» (José Pacheco Pereira, Público, 17/01/09).
Pode ser visto como um jogo, mas é, mais ou menos explicitamente, um fenómeno constante na oralidade e na escrita, que tem tanto de expressivo como de estratégico.
Artigo publicado no semanário Sol de 31 de Janeiro de 2009, na coluna Ver como Se Diz.