«(…) Com os verbos que pressupõem uma repetição, em geral, não é assim. Embatemos com eles impreparados, muitas vezes em completa contramão, sem saber bem como ali chegámos e como depois será. Têm na sua origem uma mudança, uma perda, um luto, um fracasso a que temos de responder, qualquer coisa com que não contávamos… (…)»
Gosto de pensar em como é exigente, humilde, mas também grandiosa a experiência humana associada aos verbos que pressupõem uma repetição. Numa vida adulta temos de lidar a maior parte do tempo com verbos dessa natureza. Dei por mim, no último dia do ano que passou, a percorrer com os olhos, um por um, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, as muitas centenas de verbos assim que são ali apresentados. É um mapa inesperado, mas incrivelmente real. Não se admirem do que vou confessar: senti que era uma forma de oração. E mesmo se alguns verbos me enchiam os olhos de lágrimas, pelas imagens interiores que espontaneamente acordavam, era impossível não ler essa lista interminável com um profundo sentimento de gratidão.
Reabitar, reabituar, reaprender, reconstruir, recuperar, redizer, reemendar, refazer, reforçar, reintegrar, relançar, remanusear, remoçar, renegar, reparar, repassar, requentar, resguardar, ressaltar, ressentir, ressurgir, restaurar, restituir, retardar, retrair, rever, revisitar, revolver...
Quanta existência despendida, quanto esforço, desilusão e esperança detrás dessas palavras, quanta maturação e perplexidade, cansaço e resiliência, quanta aceitação, vulnerabilidade e teimosia.
Claro que encetar uma experiência pela primeira vez é maravilhoso. No verbo começar, por exemplo, há uma ingénua e espantosa alegria que perfuma tudo à nossa volta e que pode perdurar intacta por meses, anos ou séculos. No verbo inaugurar há um grau de pureza e um entusiasmo que energiza. E quando isso acontece — e graças a Deus e aos mistérios da vida acontece muitas vezes e em todas as idades — sentimos que tudo em nós converge para esse ponto; e que nós próprios, no fundo, fomos feitos para essa espécie de dia inicial, inteiro e limpo, como diria Sophia de Mello Breyner Andresen. Mas para essas experiências inaugurais fomos longamente preparados. Quando elas chegam, sabemos que é a nossa vez.
Damos o passo sustentados por anos de caminho na sua direção: a família, a escola, a cultura, os amigos, o nosso próprio crescimento exterior e interior, tudo concorreu para esse momento. Por isso, começar é quase sempre uma festa. E o júbilo daqueles que nos amam rodeia-nos nessas ocasiões como que numa dança feita para não ser esquecida.
Com os verbos que pressupõem uma repetição, em geral, não é assim. Embatemos com eles impreparados, muitas vezes em completa contramão, sem saber bem como ali chegámos e como depois será. Têm na sua origem uma mudança, uma perda, um luto, um fracasso a que temos de responder, qualquer coisa com que não contávamos, uma alteração de planos que nos transcende ou, então, um desejo que nos sobe por dentro e deve ser absolutamente escutado. Não é obrigatório que estejamos sós a assumi-los, pois também é verdade que nos descobrimos mais acompanhados do que pensámos. Mas, sim, há uma solidão até aí desconhecida, há um silêncio semelhante ao do fundo do mar dentro do nosso corpo, e por todo o lado há feridas, quebras e memórias por curar. Passa a haver um quinhão de incerteza, que antes não conhecíamos, com o qual temos de fazer contas.
O mais extraordinário, porém, é compreendermos que isso em nada nos diminui. Pelo contrário, os verbos que pressupõem a repetição repartem connosco uma sabedoria que já não trocávamos por nenhuma outra coisa. E permitem-nos descobrir dimensões da realidade sem as quais seríamos mais sectários e unívocos, quando a vida é uma respigadora múltipla e polifónica. O último desses verbos, no Dicionário Houaiss, fala de uma coisa, para nós, inesperada: o ruído que se faz a voar. É o belo verbo rezumbir. Acho que o vou guardar.