«[...] [N]o estrépito de tão insistente corresponsabilização, ficam na sombra dados importantes [...].»
Quem consultar uma qualquer gramática vê lá descritas várias maneiras possíveis de não referenciar o sujeito de uma ação. Duas dessas maneiras é usar o pronome -se ou usar a primeira pessoa do plural. Por exemplo:
«Em face dos dados, constata-se que a situação é alarmante.»
Ou então: «Em face dos dados, constatamos que a situação é alarmante.«
Quando, num texto, o locutor diz «constatamos» ou «podemos constatar», ele fá-lo porque não quer especificar quem é que constata. Diz-se então, em linguística, que o sujeito é de referência genérica.
Vem isto a propósito das múltiplas declarações na imprensa, por responsáveis políticos e outros, sobre a questão da violência doméstica.
Diz o Bastonário da Ordem dos Advogados à SIC que, cito, «temos de tirar conclusões, temos de atuar e temos de perceber que a violência doméstica é um flagelo».
António Costa, no debate quinzenal no parlamento, disse que, cito, «os números que conhecemos envergonham a sociedade que somos».
O Presidente da República disse que a violência doméstica, a par de outras desigualdades entre homem e mulher, «são preocupações que não podemos ignorar ou esquecer.»
De acordo com estas e outras declarações, todos nós somos, enquanto sociedade, de alguma forma responsáveis pelas mortes das mulheres às mãos dos seus companheiros.
Este quadro de pensamento é muito conveniente porque inibe a pessoa comum de se questionar sobre quem são realmente os responsáveis e porque, no estrépito de tão insistente corresponsabilização, ficam na sombra dados importantes, como por exemplo, os números avançados pelo assessor do Gabinete da Procuradora-Geral da República e que são estes: dos quase 30 mil inquéritos de violência doméstica, 20 mil foram arquivados. E, a seguir, o mesmo assessor, explica muito bem o que se passa, e cito: «o número desejável de tramitações é de 100 por Procurador, mas há Procuradores que recebem 600.»
No filme Impacto Súbito, quando o inspetor da polícia, protagonizado por Clint Eastwood, surpreende um gangue a assaltar um café, ele avisa-os, muito calmamente: «não pensem que nós vos vamos deixar simplesmente sair.» O bandido, desafiador, como vê só um polícia, pergunta: «Quem é esse nós?» E o polícia responde: «Smith and Wesson and me.»* (Smith and Wesson é a marca do seu revólver).
«Quem é esse nós?» É essa a pergunta que o cidadão comum devia estar a fazer depois de ouvir tantas vezes a primeira pessoa do plural a propósito da violência doméstica.
*«Smith and Wesson e eu.»
Texto da linguista Ana Sousa Martins, para a rubrica "Cronigramas" do programa de rádio Páginas de Português (emissão de 17/03/2019).