« (...) Só uns primos, que por aqui tinha, eram mesmo gente de Lisboa. Recordo que eles ecoavam, nas conversas, um sotaque muito próprio, que por anos me pareceu bem bizarro e que, agora, dá ares de ter-se dissolvido – ou será o meu ouvido que entretanto mudou. E diziam umas palavras estranhas, para quem vinha do norte: algibeira para bolso, gelosias para persianas, cadeado para aloquete, telefonia para rádio, imperial para fino e coisas assim. (...)»
Havia uma expressão, muito usada em outros tempos, que transpirava uma atitude de desinteresse: «Não sou de cá, eu só vim à bola!». Era assim a modos de um «não tenho nada a ver com isto!». A frase renasceu-me, na cabeça, a propósito de Lisboa e da rua onde vivo. Para concluir, precisamente, o seu contrário.
Há semanas, sob uma bátega que caía sobre a cidade, soprada dos céus, a que deram um nome de espanhola acompanhante de bar, comigo a caminho do carro, sem guarda-chuva, com as pingas a não darem espaço para fugir entre elas, matutava, a sério!, que esta é hoje, mais do que nunca e para sempre, a minha cidade. Disse isto para dentro com uma sinceridade tão enfática que até a mim me surpreendeu.
Não sou de cá, de facto. Nasci em Vila Real. A primeira vez que vim a Lisboa, o meu pai levou-me ao Jamor, numa tarde onde Portugal apanhou uma “abada” da Suécia, em futebol. Sou dos que vieram «à bola», vistas bem as coisas. Com os meus sete anos da época, nem reparei que andava ali, na relva, o grande Matateu (um dia, contei isso ao Vicente, irmão dele, num estádio de Nova Jérsia, onde, há quase vinte anos, fui gozar uma tarde de convívio com velhas glórias lusas em chuteiras). Por isso, nem sequer me recordo de ver o Costa Pereira “encaixar” os seis golos nórdicos, com o Águas a tentar salvar a honra do convento, com os dois da nossa parca resposta.
Vim para Lisboa no final dos anos 60. Morava nos Olivais. De manhã, ia a Moscavide apanhar o 28 para chegar perto da zona da Junqueira, onde estudava. Guardei, na minha organizada memória de cheiros, o fumo baixo e intenso que nos entrava no autocarro, vindo das refinarias que, muitos anos mais tarde, a construção da Expo iria fazer desaparecer. Seguíamos ali, ensonados, como sardinhas em lata, a embaciar de respiração, em tempo pré-covid, as janelas dos verdes carros da Carris.
Tempos mais tarde, sem ter mudado de morada, tinha mudado provisoriamente de vida e de rumo: apanhava o 21 para Entrecampos, depois o metro para os Restauradores, subia o elevador para o Bairro Alto, que atravessava a passo rápido, para entrar, até às 9 e 35, no meu emprego de funcionário da Caixa, no Calhariz. (Depois das 9 e 35, tinha de se pedir ao senhor Marques, com uma desculpa, para nos deixar assinar o livro de ponto). Comia, com os meus colegas bancários, nas tascas da Bica, de Santa Catarina e de coisas por ali à volta, no Bairro Alto.
No fim do trabalho, mudava de registo. Parava na Opinião, entre livros e uma “Cuba libre”, bebida então na moda, cruzando nomes de quem lia coisas nos jornais. Ia a uns cursos no Centro Nacional de Cultura, ali perto. Ao cair da tarde, com as lojas a fechar e os caixeiros a apressarem-se, descia, até ao Rossio, um Chiado deserto, num cenário que a pandemia me fez agora recordar.
À época, verdade seja!, eu quase não conhecia aquilo que se pode chamar de lisboetas de gema, os tais alfacinhas, de que agora já ninguém fala. Tenho ideia, provavelmente errada, de que ninguém, das minhas relações de então, era de Lisboa. Uns eram da Beira, muitos amigos eram de Trás-os-Montes, gente que estudava comigo vinha de África, tinha minhotos conhecidos, de Viana, terra onde passava as minhas férias.
Só uns primos, que por aqui tinha, eram mesmo gente de Lisboa. Recordo que eles ecoavam, nas conversas, um sotaque muito próprio, que por anos me pareceu bem bizarro e que, agora, dá ares de ter-se dissolvido – ou será o meu ouvido que entretanto mudou. E diziam umas palavras estranhas, para quem vinha do norte: algibeira para bolso, gelosias para persianas, cadeado para aloquete, telefonia para rádio, imperial para fino e coisas assim.
Com todos eles, muito por causa deles, mas também porque me adaptava com facilidade e gosto às cenas urbanas em que projetavam as suas muito diferentes vidas, fui-me habituando a gostar das muitas Lisboas por onde me levavam. Fui-me tornando lisboeta assim.
Casado, passei a viver, depois, um pouco fora da cidade, naqueles caixotes a estrear, para a pequena burguesia, que se construíam então em Santo António dos Cavaleiros. O dia era passado em Lisboa, onde havia de ser a minha tropa e em que tive outros empregos.
A certa altura, fui-me embora para o estrangeiro, levado pela profissão em que entretanto ingressara. Regressei a Lisboa quando isso tinha de acontecer, vivi ao lado do Campo Pequeno, com lojas onde se conheciam as pessoas. Casas com vizinhos com nome, essa coisa boa que nos faz sentir parte de um mundo, como hoje felizmente de novo me acontece.
Um dia, já nem sei bem porquê, ou talvez porque me faltava espaço para os meus livros, fui viver para a Lapa.
Quando disse ao meu pai, lá para Vila Real, que tinha comprado (melhor: que iniciara a compra, porque demorou muitos anos a pagar ao banco) uma casa na Rua de S. Domingos à Lapa, ouvi, de volta, pelo telefone, com uma gargalhada: «Vê lá se não compras a casa do Dâmaso!”.
É claro! Era isso! Tinha-me esquecido! O Dâmaso Salcede, o sportman de Os Maias, tinha “morado” naquela que ia ser a minha rua. É lá que se passa a cena magnífica em que o João da Ega e o Cruges lhe foram exigir a carta de desculpas para o Carlos da Maia, com o Dâmaso a hesitar se «embriaguez é com um “n” ou com um “m”?» . Quantas vezes, com o meu saudoso amigo Luís Santos Ferro, discuti onde é que o Eça teria pensado colocar a casa do Dâmaso. A doutrina comum foi assentando em que seria lá bem para o fundo da rua. Nem imaginam as manias que os queirosianos obsessivos podem ter!
«Olha lá, ó meu burguês! Ouvi dizer que agora vives na Lapa!», foi do vozeirão de um amigo esquerdalho, mas bem na vida, que saiu, numa noite do Procópio, esta ironia sobre a “traição” política de classe que o meu novo bairro simbolizava. Pois era! Tinha essa sorridente contradição. À defesa, eu argumentava que a “minha” Lapa era já inclinada para os lados da Madragoa, o que dava um ar fácil de poder esperar integrar uma marcha nos santos populares.
Durante anos, a minha freguesia foi a de Santos, mas, depois, fez-se uma molhada geográfica, que passou a incluir os Prazeres, tudo embrulhado no nome de Estrela. Razão tinha uma amiga que achava que, à nova freguesia, assentava melhor o nome de “Santos Prazeres da Lapa”!
A ”revanche” ideológica possível tinha-a descoberto muito cedo, mesmo antes de para ali ir viver. A minha rua, a Rua de S. Domingos, é cenário de uma das mais emocionantes fotografias de como se viveu, em Lisboa, o dia da vitória dos Aliados, no final da Segunda Guerra Mundial.
À direita de quem desce a rua, esteve sediada, por décadas, a embaixada britânica, num excelente edifício, há anos vendido pelo Foreign Office a uma companhia de seguros, que hoje muito ganharia em ter quem lhe iluminasse profissionalmente a bela fachada.
Alguém, nesse dia de júbilo democrático de 1945, de uma varanda da antiga embaixada, fotografou a multidão, onde se agitavam as bandeiras dos países vencedores. De todos? Não. Há alguns manifestantes que se vê terem um simples pau na mão, sem nele se vislumbrar qualquer bandeira. A verdade é que ousar mostrá-la, bem vermelha (não encarnada) como devia ser, com a foice e o martelo do estandarte soviético, era capaz de não ser muito prudente, atento o zelo de um pessoal que, como se vê em algumas imagens, colocara os carros um pouco mais acima e que, com certeza, iria acabar o dia a reportar o evento num certo endereço no Chiado. Tenho orgulho de ver as minhas janelas de hoje nas imagens daquela manifestação de coragem.
Há semanas, no 25 de Abril, lembrei-me de que, nessa data exata, em 1974, quando, como militar a prazo, andava, curioso, a espiolhar as instalações da RTP no Lumiar, que a minha unidade havia ocupado na madrugada anterior, quis saber qual era o gabinete de Ramiro Valadão, que presidia à televisão [pública portuguesa].
Foi então que, alguém, lá da casa, me esclareceu: «Não é aqui! Aqui são só os estúdios. O gabinete dele é na rua de S. Domingos à Lapa». Só muitos anos depois fui a esse belo palacete, situado no lado sul da rua, encontrar-me com essa grande figura do bem que foi Mário Ruivo, que por ali trabalhava, no final da vida, nesses mares em que navegava sabedoria e jovial inteligência.
É assim, caro leitor, esta minha rua. Entra-se nela vindo da Buenos Aires. No alto, por alguns anos, sobreviveu uma loja com produtos da Transilvânia, que a pandemia terá ajudado a fechar. Nunca lá entrei e hoje tenho pena de não ter ali tido uma conversa sobre o Drácula, como se impunha.
Um pouco mais abaixo, olhando ao fundo, vê-se o rio e a outra banda. A rua é longa, nela passam elétricos e muitos aceleram. Hoje, quase não tem comércio. Em outros tempos, houve por ali um café, com o épico nome de Valquíria, que foi sendo trespassado e onde agora se vê uma senhora chinesa que, ao que parece, passa roupa. Se continuarmos a descer a rua a pé, vê-la-emos estreitar, ficar com um piso de bairro antigo, desaguando, finalmente, numa escada com corrimão, antes de chegar às Janelas Verdes.
É uma rua de muitas casas e poucas gentes. De muito alegre, verdade seja, a minha rua tem apenas um infantário, cuja paragem de atividade fez cessar, por alguns meses, a gritaria saudável que a miudagem por lá faz. Mas tudo isso já voltou, felizmente. Ligo o tempo do confinamento à falta desse chilrear.
Quero com isto dizer que a minha rua é uma rua triste? Ora essa! É a minha rua e a rua onde vivemos tem a alegria da felicidade que nela queiramos e possamos ter. E, já agora!, que fique muito claro: eu também sou de cá, da minha rua, desta Lisboa.