« (...)Imagina é muito mais do que mais, muito mais do que menos, muito mais do que mais ou menos. Trata-se de uma expressão inteira, uma diatribe esparramada de nuances, um tratado das possibilidades infinitas de imagens no céu de nossa língua, a que chamamos linguagem. (...)»
Imagina. Estou há mais de vinte anos em São Paulo e, apesar de ter tido um filho paulistano, o que de certo modo poderia me perpetrar uma credencial de cidadania, muitas vezes ainda sinto pontadas do mineiro estrangeiro aqui na espinha.
Mas é algo que passa logo, já vi. Aos poucos, tornei-me aquele paulistano que tem saudade do trânsito ruim, da fila no restaurante, da correria que até estranha quando a coisa fica muito sossegada. E esse é o verdadeiro green card do geotransplantado, estar-se confortavelmente ao modo típico do lugar. Enfim, adaptei-me ao ritmo da cidade. Tanto que as famosas lufadas de nostalgia, na linha da ilusão drummondiana do migrante: «Quando vim da minha terra, / não vim, perdi-me no espaço,/ na ilusão de ter saído./ Ai de mim, nunca saí...» já estão sob controle em eventuais crises de abstinência.
Pude perceber essa integração ao universo, digamos, parassampático[1], quando, dia desses, utilizei, autômato, a expressão «imagina!». Foi um susto. E um pertencimento. Quando dei por mim, falei, fluente, fluentemente: imagina. Imagina!
Há alguns sentidos na linguagem coloquial que ultrapassam de longe o seu mero valor semântico. E isso é deliciosamente comum a todas as línguas em todas os seus sotaques regionais. Pode parecer, portanto, em princípio, pouca coisa soltar um imagina como, sei lá, dizer um “voilà” em Paris, ou um “bullshit” em Noviork. Mas posso lhes assegurar que o imagina no repertório semiótico paulistano é algo bem mais complexo e profundo do que se imagina, ops, com apropriações em miliumas formas melódicas na forma única de que se compõe.
De início, achava a expressão apenas cordial. Imagina era apenas uma resposta imediata ao tradicional obrigado. Qualoquê. Com o tempo, passei a perceber que imagina não significava só «de nada» e que, em situações mais sutis de inflexão, servia como uma interjeição de discordância sobre uma opinião subitamente colocada em discussão. Imagina!
Conforme a dramaticidade musical da entonação, claro, é assim que a coisa funciona, percebi que o imagina podia mudar dessa simples assimetria opinativa para uma forte desaprovação e até mesmo para súbita e frontal condenação, afirmado em alto e bom som. IMAGINA!
Com um pouco mais de verve no “g” e olha o imagina aí virando expressão de desgosto profundo, repugnância ou um certo asco, quase nojo mesmo. Imaggggggina!
Há momentos em que o imagina guarda extremo pedantismo, nesses casos o “a” final demora-se uma semínima e meia a mais e a palavra fica tanto mais comprida quanto a pose que se quer dar. Assim: imaginaaaaaaaa!
Dentro da simbologia consagrada por Guimarães Rosa no vocabulário sertanejo, o imagina seria algo equivalente ao nonada, termo profundamente intrínseco à cosmogonia do sertão, com uso muito variado e rico de sutilezas na inflexão, seja no mistério de Diadorim, seja no vazio de Riobaldo, seja na negativa de Hermógenes, em seus vários nadas, seus muitos zeros, a torto e à direita, tal como descobri haver no imagina paulistano.
Não por acaso, nonada é a primeira palavra do Grande Sertão: Veredas. O imagina não era pra ser a primeira palavra deste texto aqui, mas acudi-me humilde e reverenciadamente ao seu topo e agora mesmo o coloquei lá, ingênua e des-pretensiosamente, a tal expressão. E caiu feito uma luva, claro, pois, magina, já sem o i, evidentemente, quando adentramos os terrenos mais íntimos e coloquiais do imagina.
A coisa funciona também como uma conclusão óbvia do irrefutável, do indiscutível, uma linha reta entre dois pontos pacíficos, ou, como queiram, separadinho, "i-ma-gi-na". Quer dizer: fim de papo, ponto final.
Tiro o meu cartão de crédito para pagar a conta do boteco e, num átimo, sinto meu amigo me empurrando com o ombro, o cartão dele a postos, em riste, imagina!
Pergunto ao porteiro do prédio se a crise no Corinthians já passou, e ele, imagina...
Arrisco-me a adivinhar a idade da senhora que passa, minha mulher reage, imagina. Nem deu tempo de imaginar.
Pergunto à sogra se as crianças estão bem agasalhadas, imagina.
Querem saber de mim se o filme é bom, entusiasmado respondo, tão garboso quanto sutil e ambivalente: imagina.
Foi aí que me dei conta do impacto do imagina no “imaginário” (com duplo sentido, por favor, imagina) paulistano. Ou em mim mesmo, já devida e prontamente imaginado como paulistano.
Quanto à multiplicidade de aplicabilidades, essa palavra mágica-imagética é muito mais do que sim, muito mais do que não, muito, muito mais do que talvez.
Imagina é muito mais do que mais, muito mais do que menos, muito mais do que mais ou menos. Trata-se de uma expressão inteira, uma diatribe esparramada de nuances, um tratado das possibilidades infinitas de imagens no céu de nossa língua, a que chamamos linguagem.
[1] N. E. – O escritor parece fazer um jogo de palavras entre parassimpático («relativo a um dos dois sectores do sistema nervoso vegetativo, responsável pela regulação automática e inconsciente das funções orgânicas», dicionário da Academia das Ciências de Lisboa) e Sampa, forma carinhosa de São Paulo.
Texto publicado no dia 24 de maio de 2023 no perfil de Facebook do escritor brasileiro Marcílio Godoi