Nos seus últimos anos, Fernando Pessoa sente-se cansado. A gradual debilidade física alia-se ao estado depressivo, que se acentuara, evidente neste comentário expressivamente revelador do seu fino sentido de humor: «Tenho estado velho por causa do Estado Novo»1.
A 19 de novembro de 1935, escreve o último poema na língua materna: «Há doenças piores que as doenças».2
Dez dias depois, a 29 de novembro, dá entrada no hospital de São Luís dos Franceses, datando desse dia a sua última frase escrita – «I know not what tomorrow will bring»3 –, traduzindo simultaneamente a permanente inquietação e a insatisfeita curiosidade sobre o mistério da vida. Morreu no dia seguinte, a 30 de novembro, de uma crise hepática.
Permanecerá irrespondível e a causar alguma estranheza o que terá levado o poeta a escrever a frase em inglês, nesse momento provavelmente pressentido como a «interminável hora», uma vez que, depois do seu regresso definitivo a Portugal, em 1905, decidira três anos mais tarde preterir a língua inglesa, idioma em que tinha sido educado em Durban4, e começar a escrever em português, língua privilegiada, escolhida, eleita, pois, como legitima a célebre frase «Minha pátria é a língua portuguesa.»5
1 Em carta dirigida ao poeta Marques Matias
2 Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mas reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta coisa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.
3 Em português: «Não sei o que o amanhã trará.»
4 É para essa Durban do fim de século XIX, tão distante e diferente da sua Lisboa natal, que o poeta é levado aos sete anos (fevereiro de 1896) e onde permanece durante quase uma década, regressando definitivamente à pátria, em Setembro de 1905.
Durban é uma cidade pequena, em franco desenvolvimento, sob «o influxo de uma grande cultura europeia», a inglesa, como dirá mais tarde ao amigo Mário de Sá-Carneiro. E é nessa cultura que fará a sua formação, uma cultura livresca que o leva a destacar-se quer na St. Joseph Covent School, onde rapidamente aprende inglês e faz cinco anos de escolaridade em apenas três, quer mais tarde na Durban High School, escola detentora de um nível académico excelente.
Aqui, mais novo que os colegas, não faz grandes amizades, refugia-se na leitura e descobre cedo a sua vocação: aos doze anos escreve os primeiros poemas em inglês e cria o heterónimo Alexander Search..
No exame de admissão à Universidade do Cabo, o seu ensaio, considerado o melhor, foi premiado com o Queen Victoria Memorial Prize.
No entanto, a língua inglesa, embora tenha sido a da sua educação académica e o tenha acompanhado ao longo da vida na profissão de tradutor de cartas em várias firmas comerciais, acaba por ser preterida em relação à língua pátria. Daí a estranheza causada pela sua última frase escrita, no leito da morte, recorrendo ao inglês. E aí encontramos uma inquietação e curiosidade simultâneas, mas quase paradoxais, perante essa evidência que se pressente e se avizinha.
5 Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, ed. de Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1982, vol. I, págs. 16-17