« (...) As palavras não são escolhidas com o propósito de criar um texto com um sentido claro e compreensível para todos. Falar ou escrever passou a fazer-se através da montagem automática de blocos de sinais verbais. (...) »
Quando ouvimos ou lemos um texto e não compreendemos absolutamente nada do que lá se diz, ficamos com alguma sensação de desconforto, porque, em geral, pomos o ónus dessa falha em nós próprios. Assumimos instintivamente que somos nós que estamos em falta e damos crédito ao autor ou orador, pois assumimos que quem produz um discurso tem por principal objetivo fazer-se entender. Ou seja, somos ingénuos.
George Orwell (1903-1950) no seu ensaio "Política e Língua Inglesa", publicado pela primeira vez em 1946, declara que o inglês está em decadência. Essa decadência deve-se não aos erros de gramática e sintaxe que os falantes a toda a hora cometem, mas ao facto de as pessoas cada vez mais tenderem a falar por chavões ou agregados de palavras pré-fabricadas. As palavras não são escolhidas com o propósito de criar um texto com um sentido claro e compreensível para todos. Falar ou escrever passou a fazer-se através da montagem automática de blocos de sinais verbais. Quando isto acontece, e acontece muito, o texto é uma fraude e o escritor um embusteiro.
No livro Deve Estar a Brincar, Sr. Feynman, o físico Richard Feynman (1918-1988), cientista e Prémio Nobel da Física, conta que um dia teve de ler um ensaio de um sociólogo. Mal começou a ler o texto ficou estupefacto com aquilo, porque não conseguia entender nada do que lia. A princípio pensou que era por causa de não ter lido as obras que estavam recomendadas sobre aquele tema específico. E sentiu-se incomodamente inapto para a tarefa. Mas depois decidiu insistir e ler cada frase muito devagar e com muito cuidado. O texto começava com esta frase: «O elemento individual da comunidade social muitas vezes recebe informação através de canais visuais e simbólicos.» Feynman diz que leu a frase de trás para a frente e da frente para trás até que finalmente conseguiu perceber o que a frase dizia e que é simplesmente isto: «As pessoas leem».
Há tempos, recebi uma carta do INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) em resposta a um pedido de registo de marca que tinha efetuado. O pedido tinha vindo indeferido por, e cito, «falta de capacidade distintiva do sinal registando tal como previsto na alínea tal, do artigo tal e tal.» Bem li a frase de trás para a frente e da frente para trás, como fez Feynman, mas continuo sem entender o motivo da recusa.
Crónica da autora difundida na rubrica "Cronigramas" do programa Páginas de Português, emitido no dia de 7 de julho de 2019.