«… não é certo que o Ciberdúvidas sobreviva a mais uma crise de patrocínios. Seria incompreensível que ninguém lhe renovasse os trocos. E seria desejável que alguma fundação colhesse os louros fáceis de um financiamento mais generoso, para que o Ciberdúvidas retirasse o Português da coutada das Humanidades e nos trouxesse os contributos das ciências (…).» Artigo publicado no jornal português“i” de 25/06/2012, que a seguir se transcreve na integra, com a devida vénia ao autor.
Falava o central Pepe e lembrei-me que as polémicas sobre a língua portuguesa são dominadas pela disciplina de Português e os acordos ortográficos. Sacrificar o cânone literário é deprimente e percebo que os acordos ortográficos exaltem os ânimos. Que voltem então os grandes autores ao liceu e se aceite que, tal como não se troca de mãe, ninguém deveria ser obrigado a reaprender a língua materna, pelo que a adesão a qualquer acordo seria obrigatória para as instituições, mas não para cidadãos com o ensino básico concluído. A tragédia é outra.
Nos últimos anos, a língua beneficiou apenas de dois acontecimentos. O primeiro foi um daqueles achados que saltam gerações: Ricardo Araújo Pereira, um humorista que não escreve apenas “bem”, mas faz com a língua o que outros não conseguem fazer com o sexo. O segundo foi o Ciberdúvidas, um reduto de civilização que juntava utentes e especialistas da língua, onde se podia discutir o uso de “espoletar/despoletar” ignorando o colapso financeiro da Europa. Não erro o tempo dos verbos, porque não é certo que o Ciberdúvidas sobreviva a mais uma crise de patrocínios. Seria incompreensível que ninguém lhe renovasse os trocos. E seria desejável que alguma fundação colhesse os louros fáceis de um financiamento mais generoso, para que o Ciberdúvidas retirasse o Português da coutada das Humanidades e nos trouxesse os contributos das ciências: a gramática inata, as línguas e a genética de populações, os palavrões à luz da psicologia evolutiva, o estilo dos heterónimos de Pessoa destrinçado por métodos quantitativos, etc. Cada língua é um filão, entre nós soterrado por polémicas bafientas, que outros começaram a divulgar em programas geniais, como Lexicon Valley, um “podcast” norte-americano. Urge fazer o mesmo, para que a riqueza do Português não esteja só ao alcance de quem aprendeu Inglês.
In jornal “i” de 25de junho de 2012.