A língua portuguesa, rica em variações e nuances, apresenta diferenças ortográficas que refletem as particularidades culturais e regionais dos seus falantes. Um exemplo claro dessa diversidade é a distinção entre as palavras escuteiro e escoteiro. Embora ambas se refiram ao mesmo movimento, cada uma carrega conotações e associações específicas que vão além da simples variação linguística.
A formação das palavras escoteiro e escuteiro tem raízes etimológicas comuns, remontando ao movimento fundado por Robert Baden-Powell em 1907. De acordo com o Dicionário Houaiss, escoteiro é formada pelo elemento escot(e)-, adaptação do inglês scout. O termo inglês, usado desde 1534, originalmente significava «alguém enviado para obter informação; membro de qualquer dos vários movimentos de escotismo», com origem em Boy scout, «menino esculca» (um jovem explorador). Ao elemento de formação escot(e)-associa-se o sufixo -eiro, para formar o substantivo (e adjetivo) escoteiro/escuteiro, que denota o indivíduo que tem ocupação ou atividade relacionada com o escotismo.
A grafia com u é justificada pela história do escotismo/escutismo em Portugal. De acordo com um texto disponível no sítio Escoteiros de Portugal, e incluído também aqui no Ciberdúvidas, 1913 foi o ano em que se fundou a primeira organização portuguesa deste movimento, sob o nome de Associação dos Escoteiros de Portugal, no qual se grafava escoteiro com o, palavra que, aliás, já existia no português na aceção de «viajante sem bagagem, pioneiro» (cf. José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa). Mais tarde, em 1923, por iniciativa da Igreja Católica, surgiu o Corpo de Scouts Católicos Portugueses, que está na origem do Corpo Nacional de Escutas. Acontece que nos meios católicos se adaptou o inglês scout por via do francês, lingua em que o termo soa "scute"; e a semelhança desta forma com o radical de escutar, levou à adoção da grafia escuteiro, cuja redução sinónima, escuta, sugere de forma imediata os atributos de «atento e observador». Esta redução confunde-se, portanto, com escuta, forma homónima empregada como nome feminino com o significado «ação de prestar atenção» e também utilizada como nome comum de dois na aceção de «sentinela, vigia (sobretudo na atividade militar)» (cf. Infopédia).
Acresce a curiosidade de o inglês scout não andar longe da etimologia de escutar. Com efeito, scout virá de um verbo do inglês médio, scouten, adaptação do francês antigo escouter, que no francês contemporâneo é écouter e que é cognato do português escutar, visto que este verbos, de duas línguas românicas, remontam ambos ao latim auscultare, ou seja, «escutar, prestar atenção» (cf. Online Etymology Dictionary).
Importa igualmente assinalar as marcas de uso que acompanham as entradas escoteiro e escuteiro nos dicionários e vocabulários ortográficos de acesso em linha1. Assim, no âmbito da lexicografia brasileira, embora o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras liste ambas as grafias, o Michaelis não regista o vocábulo escuteiro e o Dicionário Houaiss considera-o um regionalismo consagrado em Portugal, o que se compreende quando se constata que não há qualquer exemplo de autores brasileiros no Corpus do Português. Entre dicionários elaborados e mantidos em Portugal, refira-se o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), que descreve escutismo como um derivado da palavra escuta, redução de escuteiro, acrescida do sufixo -ismo, o mesmo sucedendo com escutista, que se forma a partir de escuta + ista.
Não será, portanto, errado dizer que, em Portugal, há os escuteiros católicos e os escoteiros não católicos, diferenciados pela ortografia das palavras que os identificam. Já em português do Brasil, os elementos deste grupo são sempre escoteiros.
1 Sobre os registos dicionarísticos de escoteiro e escuteiro, leia-se "Escoteiro ou escuteiro? Escotista ou escutista?" (in Priberam).