Sobre o rigor linguístico, um artigo de Ana Martins no semanário Sol, de 6 de Junho de 2009.
Recentemente, uma acesa edição do Jornal Nacional de sexta-feira, da TVI, motivou um relatório da Unidade de Análise da ERC, no qual aquela entidade, na leitura do crítico de televisão Eduardo Cintra Torres (Público, 30/05/09), não apontou falhas de rigor factual, tão-só falhas de rigor linguístico. O relatório vem ajudar a refazer a ideia feita, vigente na comunidade jornalística, de que uma coisa é a correcção gramatical, que se deve observar para não se mostrar ignorância, outra coisa (aquilo que verdadeiramente importa) é a exactidão no reportar dos factos.
Esta separação, porém, não existe.
Um exemplo. Um título: «Vargas Llosa não pretendia "insultar" Hugo Chávez» (Público, 29/05/09). O uso do imperfeito e da negação faz derivar imediatamente aquilo que em pragmática linguística se chama uma implicatura: Llosa disse algo que alguém entendeu ser um insulto. Confrontem-se as seguintes sequências: Llosa não pretendia insultar, mas insultou; Llosa não pretendia insultar e não insultou. Vê-se bem que a segunda sequência não tem qualquer pertinência informativa (sem facto não há notícia) e que, portanto, nunca seria esse o caminho interpretativo que o leitor ia seguir. Então, o que devia/podia estar escrito era «Vargas Llosa: "Não pretendo insultar Hugo Chávez"». A declaração foi feita durante a hora e meia em que Llosa esteve retido no aeroporto de Caracas, para as autoridades o deixarem bem avisado de que não podia fazer declarações políticas, sob pena de ser expulso do país. O escritor ia participar num fórum sobre liberdade e democracia. Se se tivesse recorrido ao discurso directo (e, portanto, ao presente do indicativo), o título encaminharia rigorosamente para o cerne da notícia: o país de Chávez é, para Llosa, um sítio onde estar calado é já falar errado.
Artigo publicado no semanário Sol, na rubrica Ver como Se Diz, de 6 de Junho de 2009