Maus tratos do verbo caber numa sala de aula em Luanda, nesta crónica do autor, nesta sua crónica publicada no semanário angolano "Nova Gazeta", de 9 de outubro de 2014.
À semelhança do que aconteceu na que me viu crescer, uma chuva de críticas e de reclamações por escrever sobre coisas reais nas aulas do ‘Professor Ferrão’, nas turmas por onde passo, os alunos, às vezes, revêem-se nos temas que abordamos neste espaço.
Sem desprimor, como já disse outras vezes, é preciso corrigir o que está mal, mesmo que o errado enraizado e habitual pareça o correcto, como me disse um dos delegados de turma, durante a aula sobre verbos irregulares, como ‘dormir’, ‘ver’, ‘vir’, ‘cobrir’, ‘intervir’ e, entre outros, ‘caber’.
O grande problema, geralmente, gira à volta das primeiras pessoas do singular e do plural, em que, por exemplo, conjugam «nós vimos televisão todos os dias» (ao invés de ‘vemos’), «interviu sem autorização» (ao invés de ‘interveio’). Sem nos esquecermos, claro, do motivo desta aula, o verbo ‘caber’.
Achei que os alunos quiseram maltratar os meus pobres ouvidos e dos colegas de outros colegas muito sensíveis. Pedi um exemplo, durante o ‘brainstorming’, com um dos verbos no quadro: «Professor, eu não cabo nesta carteira porque sou um pouco forte».
Mas eu, infelizmente, não consegui ser forte como a aluna, não resisti e retirei dois alunos da sala com uma falta vermelha a cada um deles, por chamarem “gorda burra” à colega que não acertou na conjugação do difícil e pouco usual verbo ‘caber’.
Se seguirmos o paradigma dos verbos regulares da primeira conjugação, aqueles que terminam em –ar, a aluna teria acertado ‘na mouche’. Mas não. Caber é um verbo irregular e, por isso, não segue o modelo paradigmático, devendo ser conjugado do seguinte modo: ‘eu caibo’, ‘tu cabes’, ‘ele cabe’, ‘nós cabemos’, vós cabeis’, ‘eles cabem’ no presente do indicativo. No pretérito perfeito: ‘eu coube’, ‘tu coubeste’, ‘ele coube’, ‘nós coubemos’, ‘vós coubestes’, ‘eles couberam’. E no presente do conjuntivo: ‘eu caiba’, ‘tu caibas’, ‘ele caiba’, ‘nós caibamos’, ‘vós caibais’, ‘eles caibam’.
Espero que ela caiba numa carteira como aquela, que vai requerer dela um pouco de esforço com a prática de exercícios e cuidado com a alimentação. Se couber, acho que os colegas não terão mais o que falar….e ela poderá dizer «Eu já caibo nesta carteira».
texto publicado no semanário luandense Nova Gazeta, no dia 9 outubro de 2014, na coluna do autor, Professor Ferrão, com o título original «Eu não "cabo" nesta carteira». Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.