A propósito do Dia de S. Martinho, assinalado a 11 de Novembro em Portugal, Maria Regina Rocha volta escrever sobre algumas palavras do culto religioso católico e não só, num artigo publicado no Diário do Alentejo de 14 de Novembro de 2008.
(...) A biografia de S. Martinho é conhecida em todo o mundo. Aí se conta que Martinho, nascido na Panónia (actual Hungria) em 316, era um jovem soldado que, numa manhã invernosa do ano de 338, na Gália, encontrou um mendigo quase nu, a tiritar de frio. Não tendo mais que lhe dar, tirou a capa, cortou-a com a espada e deu metade ao pobre. Na noite seguinte, apareceu-lhe Cristo, em visão, trazendo aos ombros esse pedaço de capa e referindo aos anjos que o acompanhavam que, ao cobrir o pobre que tiritava, Martinho cobrira o próprio Cristo. Martinho deixou o exército em 341, para se entregar à missão religiosa, considerando que era apenas "soldado de Cristo". Foi elevado a bispo de Tours (Fança), fundou vários mosteiros e paróquias e interveio junto dos poderosos, até de imperadores, a favor dos pobres e perseguidos. Faleceu em 8 de Setembro de 397.
A lenda acrescenta a este relato que o episódio em que Martinho dera a capa ao pobre ocorrera no dia 11 de Novembro e que o dia invernoso desaparecera naquele momento, dando lugar ao sol, mantendo-se durante dias uma temperatura amena: esse período é chamado "Verão de S. Martinho". Ora esse episódio acaba por estar na origem da palavra capela com o significado de "pequena igreja".
Capela provém do latim cappella, diminutivo de cappa. Esta palavra em latim significava "pequena capa" e aparece registada pela primeira vez no século VII (660), designando o manto de S. Martinho quando este o cortou em dois: com este corte, ficaram dois pequenos mantos, duas pequenas capas, daí a palavra capela, diminutivo de capa. Mas como é que a palavra capela evolui de significado de "pequeno manto" ou "pequena capa" para "ermida" ou "pequena igreja"? Aqui entra a História.
O pequeno manto de S. Martinho foi integrado no relicário real e conservado num oratório expressamente construído para esse fim (ano de 679). Oratório é uma palavra da família de orar e significa móvel que contém imagens de santos e junto do qual as pessoas faziam (e fazem) orações. A palavra capela começa, pouco a pouco, a designar o oratório da residência régia (como já atesta um texto de 710). Com o tempo, também as outras residências do rei e de casas dos grandes senhores receberam as suas capelas, e esta palavra passou a substituir a palavra oratório. A partir do século XIII, o termo já se aplicava a qualquer sala consagrada ao culto religioso (e não apenas ao móvel e seu conteúdo) e, desde princípios do século XV, passou também a designar um "lugar separado na igreja e onde há um altar" (em muitas igrejas existe o altar-mor e diversas capelas laterais com os respectivos altares) e, ainda, "pequena igreja", "ermida".
Na palavra capela podemos, então, notar o sufixo diminutivo -ela. Este sufixo é visível em muitas palavras portuguesas: um observador mais atento poderá descobri-lo, por exemplo, nas palavras ruela (de rua), viela (de via), barbela (de barba), canela (de cana), lamela (de lâmina), tabela (de tábua), algumas formadas no latim, outras já no português.
É curioso verificar como as palavras são aparentadas: de canna, ainda no latim, cria-se o diminutivo cannella (canela, tanto com o significado de "condimento" como o de "face anterior da perna"), e a palavra origina cana, em português, de que se forma, por sua vez, o diminutivo caneta.
E pousaríamos aqui a caneta, se este texto fosse manuscrito, ou seja, escrito à mão, do latim manu scriptus...
in Diário do Alentejo de 14 de Novembro de 2008.