«(...) Fala-se de tudo e mais alguma coisa e, não fosse ela a matéria-prima que aqui todos serve, também se fala de língua portuguesa.(...)»
A canção, devem conhecê-la bem os mais velhos. Chama-se Uns vão bem e outros mal e foi escrita, composta e gravada por um dos maiores compositores da música popular portuguesa, Fausto Bordalo Dias, num disco a que chamou Madrugada dos Trapeiros – e que, lançado em pleno refluxo revolucionário, 1977, trazia a bem conhecida Rosalinda. Pois foi essa canção que, em tempos mais recentes, deu nome ao programa radiofónico Assim Se Faz Portugal (citação literal da canção, que a dado passo concluía: «E assim se faz Portugal, uns vão bem e outros mal»), que nesta sexta-feira chegará ao episódio n.º 130.
Mas não é do programa em si – transposto, como vem sendo hábito nestas coisas sonoras, para podcast – que aqui se fala, e sim da sua passagem a livro homónimo. Condensada, claro, já que o livro, editado pela Minotauro, inclui «apenas” 80 dos textos já passados pelos microfones, 20 de cada um dos autores que regularmente alimentam o programa. No lançamento, que ocorreu em Lisboa, na Livraria Almedina, no Saldanha, lá estiveram os quatro, ou melhor, os cinco, pois coube a Maria Rueff as sacramentais apresentações.
Se aos microfones da TSF é sempre ela que dá voz aos quatro escritores, moldando, com a capacidade interpretativa que lhe é inata, as palavras por eles escritas às exigências da prosódia, no livro são as próprias palavras que exigem tal tarefa ao leitor, no silêncio a que a leitura convida. É outro palco, ainda que com os mesmos actores. E é curioso que o livro comece precisamente com o episódio que inaugurou o programa, e termine com um de Julho, ambos ligados a “modas”. No primeiro, Uma profissão de futuro, Luísa Costa Gomes ironiza com os malabarismos, teóricos e outros, dos comentadores políticos; e no segundo, O casal nativo digital, Manuel Monteiro expõe o ridículo da vida por emojis.
Pelo meio, fala-se de tudo e mais alguma coisa e, não fosse ela a matéria-prima que aqui todos serve, também se fala de língua portuguesa. Não só nos textos de Manuel Monteiro, revisor de profissão e autor de vários livros acerca do tema, também nos dos outros autores aqui presentes. Enquanto Afonso Cruz fala de metáforas que funcionam e metáforas que não funcionam, Luísa Costa Gomes ironiza com os erros de português («os engraçados e os sem graça»): «Então far-se-ia, dir-se-ia, fá-lo-ei, ir-lhe-ei dizer, mas isto não é uma crueldade? Quem é que fala assim? Não seria muito mais fácil ‘dizerei-lhe’? Ou ‘farei-lhe’, ‘porei-lhe’ e assim por diante» Filipe Homem Fonseca caricaturiza «aquelas pessoas que respondem a perguntas que ninguém lhes fez», começando por dizer «– E perguntas tu… quando nós, na realidade, não perguntámos nada, nem sequer pensámos em perguntar»; e também não poupa os ditos «leitores de sensibilidade», ao imaginar uma criatura numa livraria à procura de “uma coisa assim limpinha, higiénica”, que termina inquirindo o livreiro: “Já agora, fósforos e um bidon de gasolina, tem? É que eu tenho lá uns livros a precisarem de ser higienizados. O quê? Não tem? Palavra de honra, mas afinal que raio de livraria é esta? É por isso que o mundo está como está!”
Lê-se de um fôlego, com interesse, como excelente aperitivo para os próximos capítulos radiofónicos, com Maria Rueff a dar-nos, na sua voz, todas estas quatro vozes.
Crónica do jornalista português Nuno Pacheco, incluída no jornal Público de 9 de novembro de 2023 e aqui transcrita com a devida vénia. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.