« [...] Durante o reinado de Luís XIII, havia um regimento de cavalaria formado por croatas ao serviço do monarca francês. As manigâncias da moda militar puseram ao pescoço desses croatas uma espécie de cachecol curto. [...]»
Há um país europeu que me lembra sempre um crocodilo a comer o país vizinho. Falo da Croácia. A culpa não é dos croatas — é do meu cérebro, que encontra animais nas curvas duma inocente fronteira.
Se olharmos com atenção para o mapa, vemos que o nome do país em croata é «Hrvatska», que parece ter pouco que ver com o nome em português. A palavra «croata», em croata, é «hrvat».
O som representado por aquele «h» é uma consoante em que a língua está na mesma posição em que a pomos quando dizemos o «c» de «croata». Em croata, é uma consoante fricativa, ou seja, um som contínuo (também temos consoantes deste tipo; basta pensar no som representado por <rr>).
Este som croata não é muito comum. Aparece, por exemplo, no inglês da Escócia, em «Loch Ness». É também o som que alguns espanhóis usam para ler o <j>.
Quando os falantes de outras línguas tentaram representar esse som croata, substituíram-no por /k/. Foi o que fizeram os franceses, por exemplo. O «hrvat» croata passou a ser «croat» em francês.
Que tem isto que ver com gravatas?
Durante o reinado de Luís XIII, havia um regimento de cavalaria formado por croatas ao serviço do monarca francês. As manigâncias da moda militar puseram ao pescoço desses croatas uma espécie de cachecol curto.
Na língua dos franceses, esse tecido usado pelos «croates» passou a chamar-se «cravate» — a ligação é mais fácil de entrever se nos lembrarmos que aquele <c> substitui o <h> croata: «hravate». Há quem diga que a palavra ainda passou pelo alemão — os caminhos das palavras são difíceis de descortinar, mas uma coisa parece certa: na história da língua francesa, há uma ligação entre «cravate» e «croate».
As «cravates», todas lampeiras, atravessaram os Pirenéus, puseram-se à estrada pela Espanha fora – onde algumas assentaram arraiais com o nome «corbatas» – e vieram aterrar na nossa língua na forma de «gravatas».
Se alguém estranhar a transformação de «c» em «g», repare que os sons representados por essas letras são muito parecidos. A língua faz os mesmos movimentos: para usar os termos técnicos, estamos a falar de duas consoantes oclusivas velares — por outras palavras, consoantes que correspondem a uma breve interrupção da passagem do ar feita com a língua a tocar no véu palatino. A diferença entre o [k] e o [g] está na vibração das cordas vocais, um pormenor que enganou os portugueses que ouviram «cravate» pela primeira vez, transformando-a em «gravata».
Aquele som do «hrvat» passou para a «cravate» francesa e acabou na «gravata» — a língua dos falantes está sempre no mesmo sítio, mas no croata o som é contínuo, no francês passa a ser uma interrupção da passagem do ar (um som oclusivo), ainda sem vibração das cordas vocais — e, por fim, os portugueses passaram a fazer vibrar as cordas vocais, transformando o /k/ num /g/.
Curiosamente, do francês a palavra foi devolvida ao croata com o som alterado e o novo significado: «kravàta».
As palavras viajam a bordo das gargantas dos falantes — o que combina bem com a peça de roupa de que estamos a falar.
(Crónica no Sapo 24, com base em texto anterior desta página. Sobre a palavra francesa, esta página esclarece a etimologia.)
Apontamento publicado em 17 de janeiro de 2022 no blogue Certas Palavras. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.