«“Antes, a Gramática era focada no Português europeu. A influência de línguas africanas era ignorada. Estudava-se só o vocabulário e, no máximo, a pronúncia dos africanos. Mas como eles não iriam deixar suas marcas linguísticas?”»
Línguas africanas influenciaram o português falado no Brasil, sobretudo no que diz respeito à linguagem popular brasileira, como apontam alguns estudos. Retomando e resgatando a história do país, é possível começar a mergulhar no tema.
Entre os séculos XVI e XIX, mais de quatro milhões de africanos originários de duas regiões da África subsaariana – banto e oeste-africana (também chamada “sudanesa”) – foram trazidos ao Brasil em cativeiro por meio do tráfico transatlântico. Em 1823, o censo apontava 75% de negros e mestiços no total da população brasileira.
Para se ter uma ideia, só a região banto compreende um grupo de 300 línguas muito semelhantes – faladas em 21 países, como Moçambique, Angola e África do Sul –, sendo o quicongo, o quimbundo e o umbundo os de maior número de falantes no Brasil. Os dados são apresentados no artigo A influência de línguas africanas no Português brasileiro, da pesquisadora baiana Yeda Pessoa de Castro, etnolinguista e especialista em línguas africanas.
Ainda segundo a autora, entre as línguas oeste-africanas, cujos principais representantes no Brasil foram as línguas da família kwa, destacaram-se no país os iorubás e os povos de línguas do grupo ewe-fon (apelidados de minas ou jejes, pelo tráfico).
«Se as vozes dos quatro milhões de negro-africanos que foram trasladados para o Brasil ao longo de mais de três séculos consecutivos não tivessem sido abafadas em nossa história, por descaso ou preconceito acadêmico, hoje saberíamos que eles, apesar de escravizados, não ficaram mudos, falavam línguas articuladamente humanas e participaram da configuração do português brasileiro não somente com palavras que foram ditas a esmo e "aceitas como empréstimos pelo português", na concepção vigente, mas também nas diferenças que afastaram o português do Brasil do de Portugal», afirma a etnolinguista em Marcas de africania no Português brasileiro.
Apenas no século XX as línguas africanas passaram a ser mais estudadas no Brasil. Segundo Maria Eugênia Lammoglia Duarte, professora titular de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apenas a partir de 1970, os estudos de Linguística começaram a dar mais atenção ao Português falado no Brasil. «Antes, a Gramática era focada no Português europeu. A influência de línguas africanas era ignorada. Estudava-se só o vocabulário e, no máximo, a pronúncia dos africanos. Mas como eles não iriam deixar suas marcas linguísticas?», questiona a docente, comentando, em tom de crítica, que um filólogo famoso chegou a dizer que os africanos deixaram “cicatrizes” no Português do Brasil.
«Essa demora se deveu a uma ideologia conservadora que predominava nos meios intelectuais da Filologia e da Linguística até meados do século passado, que via uma superioridade cultural e linguística do colonizador português. Qualquer influência de línguas africanas ou indígenas era vista como deturpação da Língua Portuguesa, de forma negativa», diz Dante Luchesi, professor titular de Língua Portuguesa da Universidade Federal Fluminense, doutor em Linguística e autor do livro Língua e Sociedade Partidas: a polarização e sociolinguística do Brasil (2015), pelo qual recebeu, em 2016, o prêmio Jabuti, importante premiação da literatura no país.
De acordo com Luchesi, até o final do século XVII, o Brasil era um mosaico de línguas, línguas gerais indígenas e línguas francas africanas. No entanto, a história linguística do Brasil se caracterizou por um processo de homogeneização. «A primeira Gramática de quimbundo no mundo foi escrita em 1694, na Bahia, e publicada em 1697, em Lisboa. Boa parte da população escrava da Bahia era falante de quimbundo. Mas, sobretudo com o ciclo do ouro, o Português se impôs como língua hegemônica no Brasil. Escravos africanos eram misturados pelos senhores, desde o tráfico, para que não se comunicassem em suas próprias línguas. O segmento dominado era obrigado a aprender o Português», conta.
Assim, a Língua Portuguesa acabou tornando-se a língua materna de afrodescendentes e indiodescendentes. «Até o século XIX, dois terços da população do Brasil não era falante nativa ou filha de falantes nativos portugueses. As crianças aprendiam o Português a partir da variedade falada pelos adultos, em um processo de transmissão linguística irregular. Aprendiam sem ouvir pessoas adultas falando suas próprias línguas maternas, e sim a segunda língua, defectiva. Isso levou a um processo de simplificação morfológica, que caracteriza nossa linguagem popular atual no nível da morfossintaxe», explica Luchesi.
Exemplos da influência de línguas africanas no Português do Brasil
O professor da UFF afirma que esse contexto pode explicar uma série de fenômenos que caracterizam as variedades populares do português falado no Brasil na atualidade, como a ampla variação na aplicação das regras de concordância nominal e verbal, o emprego de pronomes sem flexão de caso (como em «eu vi tu na feira ontem»), o reduzido uso do pronome reflexivo («eu machuquei no trabalho ontem»).
Luchesi pontua que os estudos científicos avançaram mais na área da morfossintaxe, que diz respeito a regras de concordância e à combinação das palavras, flexão e forma. «Nesse nível é mais fácil identificar as mudanças que, geralmente, acontecem no contato massivo entre línguas. No nível fonológico, referente aos sons, é mais difícil de estabelecer a relação histórica do contato entre línguas. Diria que características da linguagem popular, como se dizer "muié" em vez de mulher’, "fulô" em vez de flor podem estar associadas.»
De acordo com Yeda Pessoa de Castro, as influências africanas se fazem perceptíveis na pronúncia rica em vogais da nossa fala (ri.ti.mo, pi.néu, a.di.vo.ga.do), na tendência a não marcar o plural do substantivo no sintagma nominal («os menino», «as casa»), na dupla negação («não quero não»), no emprego preferencial pela próclise («eu lhe disse», «me dê»).
No vocabulário, os exemplos são mais conhecidos, relativos a instrumentos musicais (berimbau, cuíca, agogô), à flora (dendê, moranga, jiló), à fauna (camundongo, minhoca, marimbondo), ao corpo humano (bunda, corcunda, banguela), à culinária (mocotó, moqueca, canjica) etc.
Yeda Pessoa de Castro destaca o processo de socialização linguística exercido pelos negros ladinos – aqueles que logo cedo aprendiam a falar rudimentos de Português – junto à escravaria e a atuação socializadora da mulher negra no seio da família colonial. Ela exemplifica o uso do termo angolano caçula em lugar de benjamim, como se diz em Portugal. Yeda ressalta, ainda, ter sido notável o desempenho sociolinguístico de lideranças afro-religiosas.
Na visão da pesquisadora, a interação linguística foi provavelmente facilitada pela proximidade relativa da estrutura linguística do português europeu antigo e regional com as línguas negro-africanas que o mestiçaram. «Entre essas semelhanças, o sistema de sete vogais orais (a, e, ê, i, o ê, u) e a estrutura silábica ideal (consoante vogal.consoante vogal), onde se observa a conservação do centro vocálico de cada sílaba, mesmo átona. Esse tipo de aproximação casual, mas notável, provavelmente possibilitou a continuidade do tipo prosódico de base vocálica do português antigo na modalidade brasileira, afastando-a, portanto, do Português de Portugal, de pronúncia muito consonantal», explica em A influência de línguas africanas no português brasileiro.
Como se determinou a influência de línguas africanas no Português do Brasil
«Primeiro, fazemos uma comparação com os crioulos portugueses, línguas crioulas que se formaram principalmente na costa ocidental da África – Cabo Verde, Guiné Bissau, São Thomé [sic] e Príncipe. Observa-se nessas línguas que, em geral, há essa simplificação: não há flexão verbal e concordância nominal. Isso reforça a hipótese de que foi algo provocado pelo contato entre línguas», explica o pesquisador.
Além disso, Luchesi participou de um estudo em quatro comunidades afro-brasileiras do interior do estado da Bahia, algumas oriundas de antigos quilombos, na expectativa de que essas línguas refletissem mais os efeitos do contato do Português com línguas africanas, por se tratar de descendentes diretos.
«Lá, comprovamos a variação na concordância de gênero ("um pessoa", "um ambulança"); a concordância verbal atingindo até a primeira pessoa ("eu trabalhou muito", "eu foi"); e formas como "eu dei os menino o remédio", em vez de "eu dei o remédio aos meninos". Nesse caso, temos um paralelo com o que acontece no inglês: "I gave the boys medicine". Mudanças que, normalmente, não acontecem nas línguas românicas, mas é geral nas línguas crioulas», exemplifica.
Segundo Luchesi, a pesquisa sociolinguística identifica tendências de mudanças nas comunidades. «A tendência é de recomposição da concordância. Mais jovens fazem mais concordância. No passado, se perdeu e, agora, está sendo historicamente constituída, na medida em que essa população está nas escolas, integradas no mercado de trabalho e é atingida por meios de comunicação de massa.»
Línguas africanas: assunto, também, para a escola
Segundo Lammoglia, é importantíssimo que esse tema seja falado nas escolas, mas o trabalho deve ser cauteloso e muito bem feito, para que não se ache que é feio ou errado por conta do africano. «É preciso mostrar que o nosso Português é fruto do contato com línguas africanas, riquíssimas e diferentes entre si, além de outras línguas, vindas com os imigrantes, por exemplo. A língua oral é um patrimônio de todo o brasileiro. Ouvindo se aprende. A escrita é um privilégio dos que têm acesso à escola e não pode servir para humilhar ninguém. Não existe ninguém que faça a concordância o tempo todo.»
Para Dante Luchesi, as línguas africanas fazem parte da história e da cultura do Brasil, devendo ser conteúdo integrado ao ensino de Língua Portuguesa. «Além do objetivo principal de introduzir o aluno no letramento e capacitá-lo a escrever e a ler textos, a escola deve formar e informar o aluno sobre a realidade da língua: ensinar a história da língua e a respeitar essa diversidade linguística. Como diz Saramago, o certo não seria dizer língua, mas línguas portuguesas. A variação faz parte de toda língua viva. E isso, claro, não impede de se estudar a norma padrão – que não deve ser considerada melhor ou pior. A diversidade linguística não é oposição ao ensino da normal padrão, mas também não deve justificar disseminação do preconceito e discriminação da linguagem popular. Já avançamos muito em outras áreas, cultural e comportamentalmente, mas a língua é terreno de preconceito e conservadorismo», conclui.
Para além da influência no Português do Brasil, as línguas africanas também podem e devem ser estudadas por si mesmas, por sua importância científica, por constituírem um manancial da diversidade linguística mundial, segundo destaca Margarida Petter, professora do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo, e que orienta pesquisas sobre línguas africanas e sobre o contato das línguas africanas com o Português brasileiro.
«Muitas dessas línguas ainda não foram descritas e muitas apenas têm registros lexicais. Ainda se pode afirmar que há muito a ser feito no que se refere à descrição e à documentação de línguas africanas. [...] Se formos além da preocupação meramente linguística, e concordarmos com o fato de que toda língua viva é um registro especial da história e da cultura de seus falantes, a descrição e a documentação das línguas africanas podem assumir uma importância sócio-histórica adicional, como lembra o linguista norte-americano Tucker Childs: o estudo das línguas da África pode contribuir para o conhecimento da história da África e, quem sabe, pode ainda trazer algum esclarecimento sobre como a linguagem se desenvolveu e se propagou, se a África for realmente o continente onde a espécie humana apareceu pela primeira vez», destaca Petter, no artigo Por que estudar línguas africanas no Brasil?, publicado na Revista Extraprensa (2018).