« (...) A solução então seria parar de ler Flaubert, Dostoievski e Sêneca? Não. A solução seria ampliar a gama de leitura e não ler apenas Flaubert, Dostoievski e Sêneca. (...)»
Nos últimos meses, trabalhamos com a ideia de que o cânone literário brasileiro sente uma renovação. A partir de várias ações e releituras, redescobrem-se autores, encontram-se outros e isso tende, cada dia mais, a enriquecer nosso campo literário.
Uma das ações que contribuíram para isso foi a Lei N.° 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de literatura africana nas escolas. Tal lei foi fundamental para que se legitimassem uns estudos e se incentivassem outros. Já em seu 1.° parágrafo do Artigo 26.ª, ela afirma:
Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
Neste ano, em que a lei faz 20 anos, o que aconteceu? Será que os professores passaram a refletir sobre o tema de forma mais ampla e significativa?
Podemos começar a nossa reflexão tentando compreender a razão de ser necessária uma lei que estabelecesse o ensino da história africana e de sua cultura num país com o passado do Brasil, o qual muitas vezes era o exílio doloroso do povo negro que chegou aos borbotões nos quase 400 anos de escravidão. Oswald de Andrade, importante poeta modernista, cria essa imagem de degredo no seu famoso “Canto de regresso à pátria” quando, já na primeira estrofe, diz:
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
O jogo de palavra entre palmeiras e palmares substitui o espaço natural da natureza paradisíaca das palmeiras pela aridez mortuária da vida escravizada e, por isso, remete aos palmares, importante quilombo do século XVII. Ainda nessa estrofe, retoma o canto, agora não dos pássaros como na famosa Canção do Exílio, de Gonçalves Dias (que aqui é o texto de referência), mas da dor do mar, quando os negros escravizados vinham da África para o Brasil. Essa mesma imagem (digamos) sonora é também utilizada pelo poeta romântico Castro Alves, em seu “Navio Negreiro”:
Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar de açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…
(...)
E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais …
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…
Dentro do cenário de horror que foi o tráfico negreiro e a miséria humana que foi a escravidão, seria de se supor que a prática deixasse marcas profundas numa nação nascente. Nesse sentido, a cultura negra tendia a ser estigmatizada, o que ainda se percebe hoje no olhar de parte da população quando se abordam as religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé.
Mas o que a literatura tem a ver com isso?
Um dos mais importantes críticos literários que o Brasil já teve, Antonio Candido, em Direito à literatura defende que a literatura é um bem inalienável e indispensável à humanidade. Ele diz: «Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma sociedade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. [...] Desse modo, ela é fato indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. Nesse sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar. Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles».
A partir disso, o ensino da literatura africana e das de matriz africana apresenta pelo menos um ganho triplo: social, pois contribui para minimizar estereótipos; ontológico, pois emerge humanidades em suas múltiplas e complexas condições; literário, pois amplia as estéticas e a própria mundividência.
Retomando o mesmo texto de Antonio Candido, o crítico fala sobre a literatura como promulgadora de um valor: «Por isso é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. (...) A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante».
Nós, como professores de literatura no Brasil, encontramos uma pluralidade de alunos, com anseios e desejos diversos. E como tais, esses alunos são, em sua maioria, jovens com vontade de representação, até porque estão na idade de se afirmarem num mundo para o qual vinham se preparando. Uma literatura que reflita apenas a visão de mundo europeia limitaria não somente a sua percepção como não necessariamente os representaria. A solução então seria parar de ler Flaubert, Dostoievski e Sêneca? Não. A solução seria ampliar a gama de leitura e não ler apenas Flaubert, Dostoievski e Sêneca.
Mas, se a solução parece simples, por que uma lei? Porque, embora a solução seja “simples”, ela não era (ou é?) aplicada – e por inúmeras razões. Dizia-se no passado que os professores não tinham formação, que as obras não tinham edições suficientes ou que a leitura de uma obra “universal” incluiria todas as questões necessárias. Há, nesses argumentos, acertos e erros que se misturam e que contribuíram para a não presença da cultura africana nas escolas.
Em relação aos materiais didáticos, houve já uma preocupação em se inserirem outros autores (ainda que de forma menos necessária do que se deveria). Entretanto, muitas são hoje as editoras que se preocupam com a publicação de autores negros, como as editoras Ananse, Malê e a Mazza.
No que tange à formação de professores, há ainda uma lacuna. Embora se apresente a literatura africana na grade de muitas universidades, nem todos ainda aderiram a isso, como afirma André de Godoy Bueno, em sua dissertação de mestrado Literaturas africanas e afro-brasileira no ensino fundamental II.
Outro ponto é se considerar se um autor ou mesmo continente teria a capacidade de ser verdadeiramente “universal”. É claro que Dostoievski abrange muito das condições humanas em suas perspectivas mais íntimas, mas isso não o legitima em todas as considerações que se podem fazer sobre ele e sobre o mundo. É preciso ir sempre além.
Diante disso, é interessante o caminho escolhido pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) na seleção das suas obras de leitura obrigatória para o vestibular, em que se encontram tanto um espaço para os “clássicos” (como Camus, Graciliano Ramos...) quanto para a literatura africana de língua portuguesa (como Mia Couto, Pepetela, Agualusa...). A prova de seleção é uma manifestação do pensamento da instituição. Neste caso, a UERJ, ao dizer ser importante a multiplicidade de autores, deixa um recado claro para os alunos. E também para os professores.
Diante disso tudo, a lei N.° 10.639, que faz 20 anos em 2023, surge como marco essencial na educação do Brasil. A partir do ensino da literatura e das histórias da África (porque a África não é um país, mas um continente com países com identidade própria), combatem-se preconceitos, descoloniza-se um saber (abrindo-se à multiplicidade de epistemologias indo além da europeia), jogam-se luzes para simbologias outras, favorecendo que os próprios alunos se enxerguem a si e aos outros com completude, com integralidade e integridade.
A literatura, assim, cumpre o seu papel mais essencial, quando, lembrando Candido, se torna um direito e assim se faz humana e humanizadora.
Texto do professor de Português e investigador brasileiro Roberto Lota publicado no mural Língua e Tradição, no Facebook, em 5 de fevereiro de 2023.