« (...) Três [insultos] de uso corrente: maricas, paneleiro e panasca. Perdoem-me o facto de não usar aspas, mas uma boa prática de lexicografia não deve fazer juízos de valor sobre as palavras. (...)»
Está aceso o debate acerca dos limites da liberdade de expressão e do humor. É um tema extremamente complexo, por tocar algo que é fundamental aos seres humanos, a própria linguagem. Eu não faço tenções de me alongar acerca do que é correcto ou não dizer, mas creio que, da mesma maneira que a morte segura de uma piada é ter de explicá-la, a compreensão do insulto pode ajudar, se não a matá-lo, pelo menos a uma utilização mais sensata.
Vamos pegar em três que são de uso corrente: maricas, paneleiro e panasca. Perdoem-me o facto de não usar aspas, mas uma boa prática de lexicografia não deve fazer juízos de valor sobre as palavras.
Em relação a maricas, todos os dicionários concordam que significa «um homem efeminado ou homossexual», se for usado como substantivo. Os mais recentes dizem que é também adjectivo, para um homem ou mulher que tem medo de tudo, é demasiado cauteloso (um/a medricas). Mas esta ideia de Maricas ter dois géneros não é nova: O Primo Basílio de Eça de Queirós dá o exemplo, quando diz a Luísa, «Tu eras uma maricas, tinhas medo de tudo». Quando surgiu a primeira definição em 1716, no Vocabulario Portuguez e Latino de Rafael Bluteau, maricas e maricão não queriam só dizer alguém medroso, mas também alguém que se sentia à vontade no meio de mulheres e, ironicamente, um mulherengo – não sei qual era o heterossexual que não quisesse ser visto como um maricas.
Mas qual é a raiz de maricas? A resposta é unânime: é um diminutivo de Maria. Como outros: maricotas, maricocas ou mariquinhas, os dois últimos sendo igualmente calão para alguém medroso, picuinhas ou efeminado. E já agora, o Dicionário Houaiss apresenta como válida a variante afeminado – adamado ou afemeado também podem ser usadas. Ou seja, maricas é um insulto para quem achar vergonhoso ser comparado com uma mulher, uma Maria – por achar que as mulheres não são fortes e corajosas.
Já o paneleiro tem uma história muito mais colorida. Panela vem do latim pannella, que quer dizer exactamente o mesmo, e é um diminutivo de panna (frigideira). Cândido de Figueiredo, no Novo Diccionário da Língua Portuguesa, de 1899, regista que paneleiro é um regionalismo das Beiras, «um fabricante ou vendedor de panelas, especialmente de barro». A primeira vez que surge com o significado de homossexual é em 1938, na obra de Alfredo Ary dos Santos, Como Nascem, Como Vivem, Como Morrem os Criminosos.
Como é que de um oleiro passámos a um homossexual? Talvez o paneleiro original fosse os dois ao mesmo tempo (sabe-se lá), mas vamos voltar atrás, à panela de barro, porque é um ponto interessante. Ao longo do tempo foram muitos os objectos que serviram de metáfora para as nádegas: o pêssego, a pevide, o frasco, a cesta, a regueifa (pão), mas muito especialmente, a bilha e a panela. Esta associação já existia no séc. XIII, e encontrava-se também na língua francesa – não esqueçamos que no séc. XIII, a Galiza e Portugal estavam muito mais ligados à cultura francesa do que hoje. Assim, não era estranho falar-se no panier (bilha), ou ouvir as vendedeiras de fruta nos mercados, dizer «É tudo açúcar na minha cesta!» (panier). Outra expressão digna de nota desta altura era o panil, que designava tanto as nádegas como a vulva – não tenho de realçar a ligação entre panil e Panilas. A relação entre as nádegas e os objectos redondos e ocos manteve-se no imaginário popular, ao ponto de ainda hoje se falar da bilha, e de “partir a bilha” como metáfora de sexo anal. Se pensarmos que antigamente o único momento que as raparigas tinham longe da vista dos pais era quando iam buscar água e podiam namorar, aquela cantiga que diz «Minha mãe mandou-me à fonte/E eu parti a cantarinha» começa a fazer sentido… De uma lista de 36 sinónimos para «ânus», o Dicionário Houaiss inclui a panela e outros objectos – e palavras que são tão surreais que deviam fazer parte do nosso vocabulário diário: o diferencial, o fiofó, o orimbotó, o quiosque, o viegas ou o centro-das-convicções! Assim, um paneleiro é, de facto, alguém que fabrica panelas, especialmente nas Beiras. Ou alguém que tem gosto e interesse em traseiros. Mas duvido que esses sejam apenas homens. Ou homossexuais.
Finalmente, panasca tem um caminho ainda mais estranho: Antenor Nascentes, no Dicionário Etimológico Resumido (1966), clarifica que panasco é erva de pasto para animais, e uma panasqueira, um campo onde exista erva deste tipo. Já um panasqueiro é alguém rude, «de traje e modos toscos», surgindo assim o tom de ofensa. Como é que essa ofensa passou a significar homossexual? Bom, isso é um mistério.
As palavras mudam sem regras, com a vontade de quem as emprega – quem faz a Língua é quem a usa, não é algo que caia do céu. Com isto não quero desvalorizar o insulto. Os insultos ferem e magoam. E podem matar. Mas as palavras, mesmo as feias e sórdidas, não são insultos por si só: dependem sempre do contexto em que são usadas. E antes de levantar a muralha contra qualquer palavra que nos faça torcer o nariz, é preciso perceber muito bem se estamos ou não a ser atacados.
Publicação de 23 de dezembro de 2016 do blogue esQrever – Pluralidade, Diversidade, Inclusão LGTBI.