« (...) Os nomes científicos podem ser difíceis de dizer e recordar, e são propícios a informações enganosas. Por conseguinte, as pessoas frequentemente designam as variantes pelos locais onde são detetadas, o que é estigmatizante e discriminatório. (...)»
Sexta-feira [dia 26 de novembro de 2021] o mundo habituou-se a novo vocábulo no léxico da pandemia de covid-19: a nova variante que se propagava em África com copiosas mutações, levando a Organização Mundial de Saúde (OMS) a considerá-la preocupante e suscitando novas restrições às liberdades, passava de B.1.1.529 a ómicron. Se o nome não foi escolha casual, ele tampouco resulta da sequência normal da ordem do alfabeto grego, utilizado desde maio para referir as variantes.
Houve saltos linguísticos e políticos. Se a letra nu (ν, o ‘n’ grego) foi evitada porque poderia ser confundida com a palavra new (novo em inglês), a candidata seguinte, seguindo a lógica aplicada até agora, seria xi (ξ). Ora Xi é também o apelido do Presidente da China, Xi Jinping (em chinês o apelido vem antes do nome próprio).
Ómicron (ο) é a 15.ª letra do alfabeto grego, semelhante em forma gráfica e som à do ‘o’ latino, também ele 15.ª no nosso alfabeto. Foi a 31 de maio deste ano que a OMS decidiu utilizar letras gregas para designar as variantes do coronavírus SARS-CoV-2 (para lá de referências científicas como B.1.1.529), para facilitar o entendimento e evitar estigmas geográficos do género «variante indiana» ou «variante inglesa».
«Embora tenham vantagens, os nomes científicos podem ser difíceis de dizer e recordar, e são propícios a informações enganosas. Por conseguinte, as pessoas frequentemente designam as variantes pelos locais onde são detetadas, o que é estigmatizante e discriminatório», explicou a OMS. A variante britânica passou a alfa (α), a sul-africana a beta (β), a brasileira a gama (γ). Só que não houve 14 variantes nomeadas antes da ómicron.
Nem todas as variantes são famosas
É natural que o leitor se recorde mais da variante delta (δ) do que de várias outras, uma vez que foi a mais recente a causar grande receio, identificada na Índia em outubro do ano passado e nomeada em maio. Alfa, beta, gama e delta são as primeiras quatro letras do alfabeto grego. Estas quatro e a ómicron são consideradas «variantes preocupantes». A OMS refere ainda «variantes com interesse». Essa lista inclui presentemente a lambda (λ), que apareceu no Peru em agosto de 2020 e teve algum eco mediático, embora inferior ao das anteriores; e a mu (μ), de início encontrada na Colômbia em janeiro passado.
Lambda e mu são, respetivamente, a 11.ª e 12.ª letras do alfabeto grego. Pelo meio houve – com pouca divulgação, agora classificadas pela OMS como «antigas variantes com interesse», dele desprovidas – a épsilon (ε), zeta (ζ), eta (η), theta (θ), iota (ι) e kapa (κ), quinta a décima letras gregas.
Depois viria, então, a letra nu. Chegou a haver órgãos de comunicação a presumir que seria esse o nome da nova variante, na semana passada. Terá sido excluída devido à proximidade sonora com a palavra inglesa new (novo). Seria difícil ao ouvido do cidadão médio distinguir nu variant (variante nu) de “new variant” (variante nova). «O mundo anglófono ficaria na situação de ouvir dois sons extremamente parecidos», explicou Margaret Harris, porta-voz da OMS, ao jornal italiano Corriere della Sera.
Aquele que não deve ser nomeado
A letra seguinte, xi, também não foi usada. Fonte da OMS citada pelo jornal britânico The Telegraph explicou que a decisão de saltar o xi visou «evitar estigmatizar uma região». «Xi é um apelido extremamente comum. As nossas diretrizes requerem que não se use nomes que possam prejudicar grupos culturais, sociais, nacionais, regionais, profissionais ou étnicos», reforçou a porta-voz Harris.
Não referiu o chefe de Estado chinês, e é certo que Xi é um apelido comum no país. Mas há um Xi mais conhecido do que todos os demais, pelo que o eufemismo não passou despercebido ao epidemiologista Martin Kulldorf, da Universidade de Harvard
«Há notícias de uma nova variante nu, mas a OMS vai saltar o alfabeto e chamar-lhe ómicron, para poder evitar o Xi», escreveu o cientista na rede social Twitter. Um professor de direito da Universidade George Washington, na capital dos Estados Unidos, aludiu aos livros da saga Harry Potter, em que quase todas as personagens são incapazes de proferir o nome do vilão Voldemort: «Aquele que não deve ser nomeado. Parece que a OMS saltou a letra grega que se seguia a nu ao nomear a nova variante. A letra seguinte é xi. É preocupante que a OMS esteja de novo a evitar incomodar o Governo chinês».
Vários outros utilizadores do Twitter concluíram o mesmo. Mas, e depois da ómicron? Com quase dois anos de pandemia, é de esperar que surjam mais versões. O alfabeto grego reserva-nos mais nove letras: pi (π), ró (ρ), sigma (σ), tau (τ), ípsilon (υ), fi (φ), chi (χ), psi (ψ) e ómega (ω). Não deverão bastar, mormente se alguma delas suscitar melindres políticos que estejam a escapar ao autor destas linhas.
No verão passado a diretora técnica da OMS para a covid-19, Maria Van Kerkhove, informou que na calha estão nomes de constelações. Poderíamos, assim, ter uma variante órion. «Íamos escolher deuses ou deusas gregos, mas eu pedi para não me obrigarem a dizê-los em público», contou a responsável, justificando-se com a dificuldade em pronunciar alguns. Já então comentou que havia um trabalho de verificação de cada nome proposto, envolvendo até a equipa jurídica da OMS, «para garantir que ninguém fique incomodado».
Cf. Ómicron (com acento) + B.1.1.529 + O mundo perante a quinta vaga de covid-19 + Nova variante covid considerada «preocupante» pela OMS — e já tem nome: Ómicron
Notícia do jornalista Pedro Cordeiro, transcrita, com devida vénia, do semanário português Expresso, do dia 28 de novembro de 2021.