« (...) Em todo o mundo há quem não suporte, quem adore e quem seja mesmo viciado em manjares picantes. Alguns gostam só para puxar a pinga a fim de apagar o “fogo”. (...)»
Quem alguma vez entrou no Mercado Municipal de Margão, segunda cidade do pequeno estado de Goa, antiga colónia portuguesa, não deixa de ficar fortemente impressionado com a quantidade e a variedade de pimentos, pimentinhos e pimentões picantes de diversos tamanhos e feitios, empilhados em extensas bancas. Para simplificar, já que, para este cronista, se torna difícil identificá-los corretamente, vamos chamá-los simplesmente de malaguetas, com perdão dos doutos entendidos.
Bem sabíamos que a Índia foi, e continua a ser, muito badalada por via das especiarias, em especial a pimenta, mas jamais teríamos imaginado que as malaguetas, nativas das regiões tropicais e subtropicais da América, roubariam ali o lugar cimeiro à, outrora, tão cobiçada pimenta.
Os hindus são ancestrais cultores da gastronomia picante. Nos restaurantes indianos é raro encontrar comidas que não façam “arder” a língua e “chorar” os olhos. Nas farmácias até há comprimidos picantes para aliviar os achaques.
Em todo o mundo há quem não suporte, quem adore e quem seja mesmo viciado em manjares picantes. Alguns gostam só para puxar[1] a pinga a fim de apagar o “fogo”. Tendo degustado saborosos pimentos durante o Caminho Português para Santiago de Compostela, na própria cidade de Padrón, onde nasceu a afamada poetisa Rosalía de Castro, ficámos fã da iguaria que não nos pareceu demasiado pungente. Vai daí, resolvemos comprar plantas da referida espécie para dispor no quintal. Todavia, olvidamos o certeiro dito da língua galega: «Os pementos de Padrón, uns pican e outros non.» Pois saíram umas malaguetas tão picantes, que uma mera pitadinha já era o bastante para adubar os pitéus. Perante a farta colheita, aproveitámos para presentear os amigos apreciadores.
Vamos então dissertar sobre a Capsicum spp., género da família das Solanaceae que agrega inúmeras espécies naturais ou híbridas, sendo a Capsicum annuum e a Capsicum frutescens as mais utilizadas nas gastronomias de todo o mundo. Referiremos só as picantes, conhecidas popularmente como piripiri, jindungo, paprica, tabasco e chili etc. Atenção que o termo chili não se refere a Chile; provém do idioma náhuatl, falado pelos nativos astecas do México que há milénios já apreciavam o jalapeño e outras malaguetas superpicantes.
As plantas podem alcançar, em média, 1 metro de altura e possuem caule lenhoso ou semilenhoso algo ramificado. São bienais, perenes, ou somente anuais, se se achar conveniente. As pequenas folhas são verdes, lisas, opostas, pecioladas e geralmente ovais. As flores têm cinco pétalas, são hermafroditas e quase sempre esbranquiçadas.
Quanto aos frutos, que constituem a parte mais interessante, podem ter diversos feitios (veja-se o livro Spices in the Kitchen da editora inglesa Hermes House que, em seis atrativas páginas, apresenta mais de trinta imagens coloridas de chillies), são bagas, inicialmente verdes, passando depois a amarelas e por fim a vermelhas. As sementes são brancas e reniformes, estando encerradas no interior oco dos frutos. A faculdade germinativa (dormência) vai de três a quatro anos. Acrescente-se que as aves não são afetadas pelos picantes, o que facilita a dispersão das plantas.
Como não bela sem senão…
Constituintes: capsaicina, carotenos, vitaminas C, B1, B2 e PP, potássio, magnésio, cálcio, resquícios de hidratos de carbono e de óleo essencial. A capsaicina é o alcaloide que lhe confere a pungência, ou seja, a ardência da baga. Tal é medida pela Escala de Scoville, que vai de zero a 100 mil, máximo encontrado na espécie habanero.
Acrescente-se que estes pimentos picantes nada têm a ver com a Piper nigrum (pimenta) que é uma trepadeira pertencente à família das Piperaceae, normalmente com menor pungência.
Propriedades medicinais: anti-inflamatória, antioxidante, rubefaciente, revulsiva, analgésica, sedativa, tónica, estimulante do apetite e da secreção dos sucos gástricos. Os especialistas mencionam também que as malaguetas atuam beneficamente nos casos de anorexia, meteorismo, faringite, lombalgia, alopecia, hidropisia, colesterol, depressão e fraqueza.
Provou-se que o organismo humano, em face do concentrado de princípios ativos, com realce para a capsaicina, reage ao calor, libertando endorfinas que causam uma sensação de bem-estar e de felicidade
No entanto, não há bela sem senão e por isso, são também apresentadas contraindicações. Os que sofrem de gastrites, úlceras gastrointestinais e hemorroidal devem reduzir os alimentos picantes. Em doses altas podem surgir diarreias, inflamação do trato intestinal e vómitos. O manuseamento dos pimentos de maior pungência pode causar irritações da pele e das mucosas. Mesmo depois de lavarmos as mãos, não se deve levá-las ao rosto e muito menos esfregar os olhos.
Segundo opinião dos experimentados, beber água ou vinho com o intuito de abrandar o ardor, não resulta. Parece que o melhor antídoto para apagar o “fogo” do estômago é comer pão com manteiga ou deglutir iogurte.
[1 N.E. (11/12/2022) – +Puxar a pinga» significa «estimular o consumo de vinho (ou outra bebida alcoólica)».]
Artigo publicado nas páginas da Sociedade Portuguesa de Naturalogia em 2 de dezembro de 2022.