A gente organiza-se - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A gente organiza-se
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Sardinhadas... afrancesadas

« (...) Para fazer a sardinade à maneira ou comme il faut, é preciso ter o material correcto e, como tal, será nécessaire um fogareiro ou fougariere cujo custo pode ascender aos 2,99 euros, fora o carvão. (...)»

 

Todos os Verões namoro o cabanon de Le Corbusier, com a intenção cada vez mais distante de copiá-lo. Mas este ano, por força das gugladas, fui parar aos cabanons de Marselha e caí do banco quando li que, por esta altura do ano, fazem-se lá grandes sardinades

Não, não eram emigrantes portugueses a falar. Era gente fina, arquitectónica, a dizer sardinades para impressionar.

Pus-me logo a convidar os meus amigos mais chiques a virem cá a casa comer uma petite sardinade com maçãs da terra (pommes de terre) e uma salade de poivrons crus que não tem nada a ver com salada de pimentos. 

É que as nossas sardinhadas são tão grosseiras e arranjam tantos problemas – há sempre um vizinho iracundo a dançar na varanda com os dedos agarrados às pontas do cabelo – que uma simples sardinade, sem ostentação ou casticismos, pode ser a solução elegante de que estávamos todos à espera, acompanhada por um gros rouge, que soa a um bruto tinto mas não é mais do que tintol do pior, pronunciado tãn-tol para disfarçar. 

Para fazer a sardinade à maneira ou comme il faut, é preciso ter o material correcto e, como tal, será nécessaire um fogareiro ou fougariere cujo custo pode ascender aos 2,99 euros, fora o carvão. 

Um cabanon, já agora, é uma barraca ou, como cantava o genial, maldoso Lupicínio Rodrigues na canção  Se acaso você chegasse

«Se acaso você chegasse

No meu château e encontrasse

Aquela mulher que você gostou,

Será que tinha coragem de trocar a nossa amizade

Por ela que já lhe abandonou?» 

Faça-se então uma belle sardinade e compare-se este machismo brasileiro com o português do Não venhas tarde.

Fonte

Crónica do autor, transcrita, com a devida vénia, do jornal Público do dia 7 de agosto de 2021. Manteve-se  a norma ortográfica de 1945 do original.

Sobre o autor

Nasceu em Lisboa em 1955. É doutorado em Filosofia Política, pela Universidade de Manchester, Inglaterra. Desde 2009 escreve diariamente no Público e, em 2013, passou a ser autor da Porto Editora, a quem confia a obra inteira. Publicou entre outros: A causa das coisas (1986), O amor é fodido (1994), A vida inteira (1995), Explicações de Português (2001). Mais aqui.