«Falar da escola como elevador social passou a ser anedota. Milhares de alunos [do ensino básico, com as aulas à distância, com recurso a plataformas em linha e reforçadas a partir de 20 de abril de 2020 pelas emissões televisivas do #EstudoEmCasa, na RTP Memória] terão acesso a nada além da telescola.»
Quando (e se) as aulas recomeçarem em setembro, grande parte dos miúdos terá estado seis meses sem ir à escola. É fácil perceber o efeito no futuro das crianças. Há estudos que mostram que as crianças que ficam alguns meses sem aulas têm, 20 e 30 anos depois, carreiras profissionais piores e rendimentos mais baixos. Naturalmente, alguns ficam muito mais prejudicados do que outros. E as consequências nefastas passam para a geração seguinte.
Os estudos que referi preocupam-se com o impacto de greves prolongadas dos professores, pelo que não é uma situação totalmente análoga, mas há também numerosas provas de que as férias de verão são uma das principais promotoras da desigualdade educativa entre miúdos de classes favorecidas e desfavorecidas. As desigualdades mantêm-se ao longo do ano letivo e disparam durante as férias. Um estudo feito com crianças de Baltimore conclui que dois terços da desigualdade de desempenho escolar entre adolescentes ricos e pobres é explicado pelo efeito das férias de verão. Percebe-se o motivo: os miúdos das classes favorecidas têm, durante as férias, acesso a um conjunto de recursos que os outros não têm (livros, campos de férias com atividades programadas, visitas a museus, etc.).
O unanimismo que a solução encontrada pelo Governo para o 3.º período escolar encontrou na opinião publicada, chocou-me. E só encontro uma explicação: não lhes toca a eles. Se o que escrevi nos dois primeiros parágrafos devia, por si só, fazer acender muitas luzes de alarme, o que está a acontecer em Portugal é muito pior. Teremos um ensino a múltiplas velocidades.
Há escolas privadas em que os horários de aulas são integralmente cumpridos. Os alunos estão online, com os professores; as aulas são divididas numa parte expositiva, numa de trabalhos em grupo e outra de trabalho autónomo. Uma ou outra pública estava a fazer o mesmo, no fim do segundo período, e não sei como será depois das orientações que receberam. Na maioria das escolas públicas, e em algumas privadas, os horários foram reduzidos para cerca de um terço do que eram e irão acompanhar os enlatados da Telescola/RTP Memória. Há ainda milhares de alunos que não terão acesso a nada além da telescola. Falar da escola como elevador social passou a ser anedota.
A solução encontrada parece-me a pior possível. Ou se assumia que crianças e jovens são o grupo de menor risco e se planeava um retorno faseado às aulas, ou, pelo contrário, se dava como adquirida a perda do terceiro período e, no próximo ano, as aulas começavam mais cedo. (Obviamente, seria necessário uma solução específica para os alunos do 11.º e 12.º ano.) Com a sua escolha, o Governo não só atrasa a recuperação da economia (neste momento, estarão milhares de pais a acompanhar os filhos nos estudos, pelo que não podem retomar a sério as atividades profissionais) como promove ativamente a desigualdade social.
Talvez por ter consciência de quão pífio é o plano do ministro da Educação [Tiago Brandão Rodrigues], [o primeiro-ministro] António Costa sentiu necessidade de anunciar que, no início do próximo ano letivo, todas as crianças em idade escolar terão condições materiais para seguir o ensino à distância. Ser uma ótima política ou um desastre semelhante ao do PC Magalhães dependerá de como for aplicado. É cedo para opinar. Mas, reconheçamos, ter um ministro da Educação a dizer que é impossível saber quais são os alunos que não têm computadores e boa ligação à Internet em casa é mau augúrio. Obviamente que é possível; dá é trabalho.
A 30 de março, escrevi que este seria o grande teste à governação socialista. Para já, parece-me ser a primeira grande falha do Governo. É como se a principal preocupação fosse a de não chatear os professores. Percebo que é uma classe massacrada, envelhecida e que foi maltratada por toda a classe política e pela sociedade em geral. Mas também sei que são os professores quem mais se preocupa com os alunos desfavorecidos. Se lhes pedirem um esforço, eles responderão.
Não vale a pena chorar sobre leite derramado. Foi uma decisão medrosa, sem ambição, de quem não assume a responsabilidade que lhe caiu sobre os ombros. Mas está tomada. Resta mitigar os seus efeitos. No mínimo, que o Governo considere a hipótese de abrir escolas durante o verão para recuperar o atraso. Como Alexandre Homem Cristo escreveu na quinta-feira, no Observador, em França, já se anunciaram aulas de recuperação em julho e agosto. Em vários países o debate está em curso. Assim há alguma esperança: pode ser que copiemos os outros.
Artigo de opinião do economista Luís Aguiar-Conraria e publicado no semanário Expresso de 18 de abril de 2020.