A palavra terapia, proveniente do grego therapeia, é usada em diferentes áreas de conhecimento e na língua corrente, significando, de acordo com a Infopédia, «meio ou método usado para tratar determinada doença ou estado patológico; tratamento; terapêutica». Há atualmente terapias para todos os gostos: e.g. familiar, sexual, da fala, do casal, de grupo, psicoterapia, isto para ficarmos só no âmbito da psicologia. A necessidade de terapia pressupõe a existência, no indivíduo ou no grupo, de um distúrbio, doença ou patologia.
A Notícias Magazine publicou, a 26 de agosto, uma reportagem intitulada "O Brasil está a invadir o vocabulário dos mais novos". A escolha das palavras nunca é inocente, pelo que o título da peça deixa antever uma opinião (muito) negativa relativamente ao fenómeno tratado. Olhando para algumas das aceções de invadir, vemos que significa «1. entrar pela força; irromper; 2. MILITAR tomar ou ocupar militarmente um lugar ou território; 3. penetrar de forma hostil ou intrusiva em; 4. infestar». Desconfiamos que a escolha da autora da peça visou expressar a opinião generalizada das pessoas com quem conversou sobre o assunto, que olham para o fenómeno com desagrado, preocupação, hostilidade e, claro, medo, muito medo. Fez, portanto, bem em utilizar o verbo invadir, não tanto por ser descritivo do fenómeno, mas sim da visão predominante que encontrou.
Muito haveria a dizer sobre o tema, mas, como tive a oportunidade de me expressar, quero sobretudo deter-me nas declarações da psicóloga consultada, que, a meu ver, têm o condão de não só serem pouco informadas do ponto de vista da linguística, mas sobretudo de alimentar preconceitos e medos. Diz a psicóloga já se ter deparado com duas crianças «com total ausência do recurso ao português de Portugal». Ora, se filhos de pais portugueses só falam em português do Brasil, tal só pode significar que o input linguístico que essas crianças recebem provém, predominante ou totalmente, dos tais YouTubers brasileiros. Em casos destes (que me custa acreditar que existam mesmo), quem precisa de terapia (ou mesmo de intervenção das autoridades) não são as crianças, mas a família, que indubitavelmente as negligencia. Mais adiante sugere a psicóloga que crianças com este quadro terão dificuldades de socialização (o que parece evidente), mas também de aprendizagem, presume-se da leitura e da escrita, porque «Os fonemas numa variante [entenda-se, variedade] e noutra são diferentes». Alguns fonemas são de facto diferentes, mas se esse número fosse tão significativo para perturbar a aprendizagem da leitura, não estaríamos a falar a mesma língua – e estamos – e as crianças brasileiras não seriam capazes de aprender a ler e a escrever usando o mesmo sistema de escrita e ortografia que nós – e são. E a psicóloga remata, ainda, alertando para que «os pais podem procurar ajuda de um terapeuta da fala» e que isso deve acontecer «antes de as crianças entrarem na escola».
Enquanto linguista e enquanto pessoa que, aos 10 anos, saiu do país hispanófono onde nasceu e foi alfabetizada, aterrou numa aldeia portuguesa sem "paraquedas" em 1971 e sobreviveu para se tornar linguista e professora de português, não posso deixar de manifestar a minha perplexidade perante as afirmações citadas. Será que falar português do Brasil é distúrbio, doença ou patologia, que carece de terapia? Será que as crianças depois dos seis anos são mesmo resistentes à mudança e incapazes de adquirir outra variedade linguística ou até outra língua? Será que os psicólogos não sabem que o período crítico para a aquisição de linguagem (i.e. o período em que as crianças adquirem as línguas a que estejam expostas) vai até ao início da puberdade? Será que os filhos de brasileiros a viver em Portugal não conseguem aprender a ler e escrever? Será que psicólogos e terapeutas da fala sabem que a variação é só uma das características fundamentais das línguas? Será que as crianças são produtos de mercado sujeitos a "controlo de qualidade" a mencionar no "rótulo"?
Ainda hoje ao almoço estava a observar várias crianças portuguesas que, à mesa com os pais, viam o Luccas Neto no YouTube e (pasme-se!) conseguiam conversar tranquilamente com os circundantes em português de Portugal. Deixem as crianças ser crianças. Deixem de as rotular. E, já agora, se querem "combater" a "invasão" do português do Brasil, produzam conteúdos atrativos e de qualidade em português de Portugal. As crianças agradecem.
Artigo da autora publicado no Diário de Notícias em 13 de setembro de 2021.