«[...] O “coro da desordem” que marca o nosso tempo, pode ser um grito de alerta rumo à enorme necessidade de uma dignificação da política [...].»
Em "Ficções políticas”, uma das crónicas do livro Alguém Falou sobre Nós (2023), de Irene Vallejo, a autora refere que, frequentemente, os políticos falam de paraísos perdidos, de utopias prometidas, de «uma Arcádia imaginária que é preciso ressuscitar». Abordando factos actuais à luz da sabedoria clássica, relembra que Platão, há muitos séculos, criou uma das lendas mais fascinantes da humanidade, ao descrever uma esplendorosa civilização esquecida, a Atlântida. Afirmava o filósofo que a história deste império lhe teria sido narrada pelo avô, que a ouvira dos antepassados. Com efeito, como sublinha Vallejo, esta cidade ideal, povoada de templos e palácios era uma ficção para divulgar os seus ideais políticos camuflando-os de factos históricos, já que o sucesso deste paraíso se devia à sobriedade, a autossuficiência económica e obediência às leis. Aliás, a política seria a prática de promover o bem comum e segundo este filósofo grego, a justiça deve ser o princípio norteador da política.
Passados muitos séculos, no panorama da pós-modernidade, das desagregações, dos questionamentos, num tempo marcado pela desordem e pelas incertezas, o mito de Atlântida jaz submerso por uma modernidade e por uma sociedade líquidas, conceitos criados pelo sociólogo polaco Zygmunt Bauman, veiculados em obras como Modernidade Líquida e Vida Líquida, entre outras. Nesta sequência, revela como a política e as instituições sólidas da modernidade se derreteram em elos instáveis, precários. Por conseguinte, o individuo contemporâneo, de raízes flutuantes, como as flores de lótus, tornou-se múltiplo, ansioso por pertencer e, ao mesmo tempo, receoso de se fixar. Nesta linha de pensamento, a identidade pós-moderna converteu-se num projeto infinito em incessante construção e reconstrução, como menciona Stuart Hall. A cada instante, o indivíduo precisa de se afirmar, atualizar, reinventar – seja no mercado de trabalho, seja nas redes sociais. Deste modo, cada vez mais isolado, desprovido de laços, o indivíduo refugia-se no consumo, na aquisição de bens materiais, que funcionam simultaneamente como garantia de status e como compensação para a crise de afectos. Assim, deixa de ser cidadão para se tornar consumidor. Não reivindica direitos, mas escolhe “produtos” (inclusive políticos) em catálogos. A política torna-se espetáculo, enquanto o espaço público se esvazia, o comum é devorado pelo individualismo, a verdade dissolve-se, por vezes engolida pela desinformação, afundada como a esplendorosa Atlântida. Surge a questão: como filtrar? em quem e no que acreditar?
A verdade é que basta percorrermos as redes sociais para nos depararmos com aspectos cínicos, manipulados e manipuladores, muitas vezes ao serviço de ideais extremistas, convertidos em sérias ameaças às mais elementares formas de liberdade. E como contraponto, Bauman preconiza uma urgência de «repolitizar o social», de criar espaços de diálogo, de escuta e compromisso. É que o «coro da desordem» que marca o nosso tempo, pode ser um grito de alerta rumo à enorme necessidade de uma dignificação da política, ancorada na escuta de outras vozes, de outras verdades, de outras formas de viver. A crise da verdade, da identidade e da realidade pode ser o início de novas possibilidades, baseadas na empatia, no diálogo colectivo, na criação de outros modos de vida e de inter-relação para os quais a Arte, e especialmente a Literatura, a par da filosofia e da História poderão dar um contributo enorme. É que como referiu Hanna Arendt, num fragmento de Obras Póstumas, datado de 1950 , «A política baseia-se na pluralidade dos homens» e nessa pluralidade pode encontrar-se a semente da dignificação, ainda que esteja tão escondida como a Atlântida, já que, nos tempos que correm, como referiu Vallejo, os únicos paraísos que emergem (ao alcance de alguns) são mesmo os fiscais…
Artigo de opinião publicado no Jornal do Algarve de 23 de Agosto de 2025. Mantém-se a ortografia de 1945 conforme o original.