Antologia // Portugal Arte Poética – II Um excerto que revela a importância da língua na arte de fazer poesia. Sophia de Mello Breyner Andresen · 4 de outubro de 2006 · 3K
Antologia // Portugal A palavra biltre Eu dou-te a palavra, e tu jogarás nelae nela apostarás com determinação.Seja a palavra “biltre”.Talvez penses num cesto,Açafate de ráfia, prenhe de flores e frutos.Talvez numa almofada num regaçoonde as mãos ágeis manobrando as linhasas complicadas rendas vão tecendo.Talvez num insecto de élitros metálicosemergindo da terra empapada de chuva.Talvez num jogo lúdico, numa esfera de vidro,pequena, contra outra arremessada.Talvez...Mas não.<... António Gedeão · 26 de setembro de 2006 · 4K
Antologia // Portugal Camões dirige-se aos seus contemporâneos * Podereis roubar-me tudo:as ideias, as palavras, as imagens,e também as metáforas, os temas, os motivos, os símbolos, e a primazianas dores sofridas de uma língua nova,no entendimento de outros, na coragemde combater, julgar, de penetrarem recessos de amor para que sois castrados.E podereis depois não me citar,suprimir-me, ignorar-me, aclamar atéoutros ladrões mais felizes.Não importa nada: que o castigoserá terrível. Não só quandovo... Jorge de Sena · 19 de setembro de 2006 · 14K
Antologia // Portugal Em Creta, com o Minotauro Nascido em Portugal, de pais portugueses,e pai de brasileiros no Brasil,serei talvez norte-americano quando lá estiver.Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,se usam e se deitam fora, com todo o respeitonecessário à roupa que se veste e que prestou serviço.Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátriade que escrevo é a língua em que por acaso de geraçõesnasci. E a do faço e de que vivo é estaraiva que tenho de pouca humanidade neste mundoqua... Jorge de Sena · 12 de setembro de 2006 · 3K
Antologia // Portugal Redondilha Por baixo da superfícielisa de cada palavrapor dentro da fenda sísmicada gramática onde fulgurao magma (sintaxe mágica)de Babilónia a Sião.Entre o étimo e o sintagmano avesso desse centroonde há uma estrela caídapara dentro do ocultorelação irreveladaentre o corpo e a palavra.Onde o invisível tremorda terra percorre o sanguee então de súbito a flautaonde só Camões é quemsobre esses rios que vão entre ninguém e ninguém. Manuel Alegre · 30 de junho de 2006 · 4K
Antologia // Portugal Poema de Helena Lanari Um poema onde Sophia reflete sobre o que a atrai no português do Brasil. Sophia de Mello Breyner Andresen · 26 de junho de 2006 · 6K
Antologia // Portugal Cinto que não sinto * Alguns anos atrás, em Campolide, Lisboa, onde moro, deparei-me com um homem de certa idade, a coxear e a tentar driblar a chuva e a ventania. Como no poema de Fernando Pessoa, eu iria adiante, ele passaria também no sentido contrário, e nunca haveria um registo do transeunte anónimo que enfrentava a sua circunstância, ou seja, um quase fim de vida a arrastar-se dolorosamente pela rua. Mas não foi assim, porque assim não quiseram os fados da história. Ele, ao passar, disse-me num tom que adivi... José Alberto Braga · 23 de novembro de 2005 · 4K
Antologia // Moçambique O lago da língua * O avô, hemiplégico, sentado. A avó na ronda do quarto, entre a porta e a janela abertas. O Verão escorrendo. Então, Maria, não levas a goropelha1? Olha, o senhor engenheiro... A saia e o casaco dela, a malinha a condizer. A desmemória também, numa espécie de alívio expresso no sorriso inocente. O esforço dele para se erguer. Nos longos preparos para o passeio de domingo à tarde, bordejando o mar e o seu perfil, entretinham a velhice. Luís Carlos Patraquim · 16 de novembro de 2005 · 5K
Antologia // Brasil Sexa «- Pai…- Hmmm?- Como é o feminino de sexo?- O quê?- O feminino de sexo.- Não tem.- Sexo não tem feminino?- Não.- Só tem sexo masculino?- É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. Masculino e feminino.- E como é o feminino de sexo?- Não tem feminino. Sexo é sempre masculino.- Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e feminino.- O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra "sexo" é masculina. O sexo masculino, o sexo feminino.» Crónica do escritor brasileiro Luís Fernando Veríssimo (1936 — 2025) , transcrita, com a devida vénia, do livro Comédias para se Ler na Escola, Publicações Dom Quixote, 2002, Lisboa. Luís Fernando Veríssimo (1936 — 2025) · 10 de novembro de 2005 · 31K
Antologia // Portugal O sal da língua Escuta, escuta: tenho aindauma coisa a dizer.Não é importante, eu sei, não vaisalvar o mundo, não mudaráa vida de ninguém — mas quemé hoje capaz de salvar o mundoou apenas mudar o sentidoda vida de alguém?Escuta-me, não te demoro.É coisa pouca, como a chuvinhaque vem vindo devagar.São três, quatro palavras, poucomais. Palavras que te quero confiar.Para que não se extinga o seu lume,o seu lume breve.Palavras que muito amei,que talvez ame ainda.Elas são a casa, o sal da língua. Eugénio de Andrade · 15 de junho de 2005 · 6K