Futuro da Língua Portuguesa no Brasil - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Futuro da Língua Portuguesa no Brasil

Uma língua falada em vasta superfície geográfica não pode ter uniformidade perfeita. De região para região se apresentam divergências de vária espécie, entre as quais sobrelevam as de carácter fonético, e as que resultam do vocabulário local. Concretamente, não há uma língua, e sim vários dialectos.

Estabelecendo a união entre os dialectos, existe em geral uma língua escrita, diferente da falada, pois, como diz muito bem Said Ali, «em todos os países, em todas as camadas sociais o homem, ao fixar suas ideias no papiro, no pergaminho, no papel, sente perfeitamente que vai deixar o ambiente habitual para alçar-se a uma esfera superior mais pura,» e nestas circunstâncias «as mesmas vulgaridades da vida não lhe parecem dignas de serem descritas senão em linguagem acima da vulgar.» ("Dificuldades da L. Port.", 289).

Para nenhuma outra língua me parece isto tão verdadeiro como para a nossa, - a que usamos no Brasil.

Trazida pelos Portugueses, implantada, muito longe da Metrópole, em meio físico e social muito diverso, posta em contacto com elementos indígenas, e africanos, cedo para aqui importados da África, e mais, penetrando e espalhando-se por dilatado território, não tardou a acusar diferenças em relação ao português europeu. Conservou formas que este ia perdendo (arcaísmos), assimilou expressões das línguas com as quais convivia, alterou a significação das palavras, criou outras, e, principalmente, realizou, por influência do clima e dos elementos étnicos estranhos, modificações na estrutura material dos vocábulos.

Cedo a nossa língua falada, ainda, nos grandes centros, se diferençou notavelmente da nossa língua escrita, conservada mais ou menos fiel à de Portugal, graças ao estudo a que nos levou «a necessidade de manusear os antigos clássicos e imitar os primores e a urbanidade da língua, que comprometíamos na babel de tantas raças.» Ainda as pessoas ilustradas e com propensão para a leitura dos grandes modelos vernáculos, não conseguem despojar-se completamente dos nossos modismos quando falam, se bem que, escrevendo, a língua portuguesa lhes flua pura e fácil da pena exercitada.

Tem sido tal a acção do ensino e da leitura dos exemplares clássicos, que expressões que no falar cotidiano ouvimos e empregamos com a maior naturalidade, nos chocariam violentamente, se as topássemos nalgum escrito. A muitos até moveriam elas ao riso e à galhofa: «Ele ê vem. Quê dê o meu chapéu? Nunca vi ela tão contente como hoje. Não faz isto, por favor; não me amola mais, já te disse. Ele trouxe isto para mim ver.»

Há, pois, uma certa barreira entre as duas línguas, a falada e a literária; mas essa barreira não é tal, que impeça a reacção recíproca de uma sobre a outra, numa espécie de osmose lingüística.

Assim, a nossa língua escrita, não obstante a sua fidelidade para com a língua de Portugal, se tem enriquecido com vocábulos de criação nossa, do nosso meio, ainda que de fonte estrangeira algumas vezes, como bonde, que é de origem inglesa; com expressões indígenas, como xará, caipora, perereca, e muitas outras; ou africanas, como cochilar, comum em Machado de Assis, e de que tenho à mão um exemplo de Rui Barbosa, nas "Cartas de Inglaterra", pág. 265.

Por outro lado, a influência da língua literária vai expungindo do falar de muitos certas locuções, como a citada "trouxe isto para mim ver", que nem todos dizem, ainda falando despreocupadamente. Os próprios negros se nota que falam hoje, melhor do que dantes.

A leitura atenta dos grandes mestres de vernaculidade tem permitido que na literatura nacional figurem escritores que revestem o pensamento com a mais límpida forma portuguesa, como, entre os grandes poetas, Raimundo Correia, e, dos prosadores, Machado de Assis.

Ao revés, o amor das coisas do torrão natal tem feito aparecer poetas que se comprazem em exibir os seus assuntos através do colorido encantador dos falares locais.

Não acredito que estas produções, em que enxameiam termos e maneiras puramente regionais, venham recalcar para lugar secundário as nossas obras de valor escritas em língua literária; nem que se encorporem no vocabulário geral todas as vozes e dizeres regionais. Se assim fosse, quem se entenderia, na multiplicidade e variedade do léxico, avolumado pelas copiosas contribuições de cada recanto do nosso imenso Brasil? O que se dará por certo é que continuem a penetrar na língua literária e nela tomar assento expressões locais, por via dos escritos dos autores nacionais de pujante individualidade.

 

Fonte

Da "Rev. de Língua Port.", nº. 11, Rio, 1921, pág. 23 e ss., in Paladinos da Linguagem, vol. III, Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1923.

Sobre o autor

Álvaro Sousa da Silveira (Rio de Janeiro, 1883 - Rio de Janeiro, 1967), foi um filólogo, linguista, foneticista e lexicógrafo brasileiro. Em 1935, exerceu na Universidade do Distrito Federal do Rio de Janeiro e, de 1939 a 1953, tornou-se catedrático de Língua Portuguesa na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. De 1944 a 1954, foi Presidente da Academia Brasileira de Filologia e, a partir daí, presidente honorário. Da sua obra, destacam-se: Lições de Português (1921-1923); Trechos Seletos (1919); Textos quinhentistas (1945) e Máximas, Pensamentos e Reflexões do Marquês de Maricá (1858).