Há pelo menos uma década e meia, um coro de vozes espalhou a notícia de que o trema fora abolido. E aquilo, na concepção de muitos, virou decreto. Daí para cá, é um Deus nos acuda para convencer os alunos de que o trema não caiu. Pior que isso é ver que, junto com o trema, defenestraram também os acentos agudo, circunflexo, e até o grave que indica a ocorrência da crase. “Acento!? Já não caiu, professora!?” Mas não pára por aí… O que dizer do misto de letras e fonemas? Ah! malditas letras e fonemas que tantos cascudos já renderam!
“Por que escrever de um jeito e falar de outro, professora?” “Por que se escreve casa com ‘s’ e fezes com ‘z’? “O que me dá raiva é que se escrevo com s, é com z; e se escrevo com z, é com s.” “Acho que isso é marcação, hein!” “Não é tudo a mesma coisa?” “Vamos lá, pessoal, regra não se discute, ora bolas!” Coitada da professora de Português… Se, pelo menos, as reclamações fossem infundadas! E os pequeninos, na hora de escrever? Quanta maldade! “Pena que a varinha de condão que minha mãe comprou no camelô veio com defeito…”
Agora, o anúncio de uma nova reforma para unificação da língua, em 2008, faz o sonho de uma ortografia sem dor ressurgir. “Oba! Não vejo a hora de esse tal acordo entrar em vigor!”
Não sonhem, por favor! Essa unificação é necessária, desnecessária e tímida. Soou incoerente? Pois então… é assim que ela está sendo qualificada pelos entendidos.
Para os defensores da idéia de que a existência de duas ortografias atrapalha sua difusão internacional, a reforma é necessária; desnecessária; e, para os que vêem impedimentos muito mais complexos dos que estão na pauta da reforma, ela é tímida, tímida. Mas tão tímida que sequer vai amenizar a desconexa e inexplicável regra do uso do hífen. para os que sabem que a difusão de um idioma depende mais do prestígio e do poder político-econômico e cultural dos países que o falam, do que da grafia unificada, ela é.
Em Portugal, a extinção dos cês e pês mudos, que só servem para encorpar as palavras – baptista, acção, óptimo, Egipto, Octávio –, seria bastante profícua sem dúvida. Igualmente seria a extinção dos circunflexos nas vogais dobradas em êe e ôo – abençôo, vêem, e até a dos agudos do grupo dos ditongos abertos em “éi” e “ói” como em geléia, constrói… Estranho é não terem incluído, nesse pacote, também os ditongos em “éu” - escarcéu, chapéus.
Mas o que dizer da extinção tão desejada do trema? O que vai sinalizar a pronúncia de “eqüino” (cavalo) e de “equino” (ouriço-do-mar)? E o professor de Ciências diz: “equino (sem trema) é um invertebrado que vive no fundo do mar.” E o aluno concentradíssimo visualiza um cavalo desossado lá no fundo do mar… No açougue: “1 quilo de linguiça (sem trema), por favor.” E o açougueiro: “lingÜIça, garoto, linGÜIça! Olha para o lado e dá de cara com o… o… aquele cidadão ex-candidato a um cargo político…. o…. e hesita a chamá-lo pela alcunha: “Manqueba ou Manqüeba?” “… … …” “Liquidificador pode ser liqüidificador… líquido ou liqüido… então…” “OLÁ, ManQEba!” “ManQÜEba, menino, MANQÜEBA! Quando vai aprender?” “Ahn… sim…”.
E o menino sai dali pensando nessas cousinhas da língua que sempre o fazem sentir idiota na frente dos outros: “interesse (^) pode ser interesse (´), extra (^) pode ser extra (´)… Mas… aeroportos (´) não pode ser aeroportos (^)…” “Selo, acesso, cedo, moço, crescido, extático… ; asa, fazer, exonerar…; xadrez, chafariz; gelo, jeito; “texto” (do latim textus), “misto” (do latim mixtus)… Por que será que ‘em cima’ é separado e ‘embaixo’ é junto?”
Infinitas são as dificuldades e incoerências ortográficas. Portanto, uma reforma simplificadora é necessária. Mas a que está em curso é uma salada de manga verde, melancia e pepino. Já que querem mexer, por que não fazê-lo de forma mais racional, para, de novo, daqui a 30-50 anos, não precisar de outra reforma? Os nascidos nos idos anos 50, certamente, ainda nem digeriram absolutamente todas as mudanças de 1971. Degustar remédio amargo é bobagem, sobretudo se ele for ineficaz.
Definitivamente, não podemos nos fechar às mudanças. Igualmente não podemos aceitá-las sem questionar a sua racionalidade. Senão, daqui a pouco, vamos retroceder ao Século XV-XVI, quando, sem regras coerentes e bem definidas – na passagem do latim para o português –, as palavras eram escritas a gosto do ouvido do freguês: escuitar (escutar), cuytelo (cutelo), luita (luta), feo (feio), cadea (cadeia), fórvm (fórum), Iavé (Javé), milhor (melhor)… Refletir um pouco sobre a pauta da reforma é importante, para não ter de, mais tarde, pagar, novamente, pelos custos de uma reforma inconsistente, que deu margens às invencionices.
Não sei por quê; mas isso tudo me fez lembrar de uma outra coisa… Mais issu fika protra veis, sinaum ese negoso fika isteisu di+ …
in A Tribuna, de 4 de Outubro de 2007