O linguista e filólogo António Emiliano publicou o seguinte texto no seu blogue, uma versão extensa do que foi publicado no "Jornal de Notícias" de 15 de Junho de 2008.
A grande novidade do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) [AO] em relação aos que o precederam é a generalização de facultatividades gráficas.
O peregrino “critério da grafia dupla” é justificado na Nota Explicativa [NE] do AO, a propósito da acentuação gráfica, assim: «optou-se por fixar a dupla acentuação gráfica como a solução menos onerosa para a unificação ortográfica da língua portuguesa.» (NE, 5.2.4)
Se onde se lê «dupla acentuação gráfica» se ler «desunificação ortográfica» — o que é legítimo, dado que a consagração da grafia dupla reflecte a impossibilidade da unificação luso-brasileira — obtém-se o seguinte enunciado:
como a solução menos onerosa para a
unificação ortográfica da língua portuguesa.»
Mas se se ler antes "caos ortográfico", expressão que considero adequada em face das consequências do AO, então o texto da NE revela um sentido escondido ainda mais expressivo:
como a solução menos onerosa para a
unificação ortográfica da língua portuguesa.»
Escreveu a Sr.ª Professora Isabel Pires de Lima, deputada do PS e ex-Ministra da Cultura, que «o princípio da facultatividade excessiva (...) vai contra o próprio conceito normativo da ortografia» (Diário de Notícias, 2/6/08): quem leu o AO — e seria importante saber quantos decisores políticos leram — não pode deixar de ficar com impressão semelhante.
Mais, o estabelecimento generalizado da grafia dupla nos domínios da acentuação, das consoantes mudas e da maiusculização, minará a estabilidade do ensino da Língua Portuguesa (ferramenta que abre a porta a todas as outras disciplinas) e porá em causa a integridade do uso e da difusão internacional da língua portuguesa, valores que a Constituição consagra (Art.º 9.º. al. f)
A possibilidade de se escrever de forma alternativa uma quantidade enorme de palavras e de expressões complexas deixa ao arbítrio de cada utilizador individual a estrutura da "sua" ortografia pessoal — imagine-se o que seria cada um de nós poder pôr em vigor a sua versão personalizada do Código de Processo Penal ou do Código da Estrada!
Imagine-se então a tarefa titânica que será, num futuro talvez não muito distante de nós, a correcção de uma prova de Língua Portuguesa, quando cada professor tiver de conhecer todas as grafias possíveis da “ortografia unificada” da lusofonia para determinar o que está certo e errado.
A aplicação da facultatividade na acentuação e nas consoantes ditas mudas resultará em grafias múltiplas, não apenas duplas, ou seja, em heterografia generalizada.
Por exemplo, formas verbais como fraccionámos e decepcionámos passarão a ter, não duas, mas quatro grafias correctas na “ortografia unificada” do português, assim:
decepcionámos, decepcionamos, dececionámos, dececionamos.
O adjectivo electrónico passa a ter quatro:
Mas como os nomes que designam domínios do saber, cursos e disciplinas podem ser opcionalmente maiusculizados (AO, Base XIX, 1.º, g), todas as designações que contenham a palavra Electrónica, como «Engenharia Electrónica», «Electrónica Industrial», «Electrotecnia e Electrónica», etc. terão multigrafias correctas (deixo ao leitor o trabalho de calcular quantas grafias correctas o último destes termos pode ter).
Ou seja, a multiplicidade gráfica associada a uma única palavra será multiplicada por todos os termos, locuções, fraseologias e colocações que a contenham.
Por exemplo, se uma universidade portuguesa oferecer o curso de «Electrotecnia e Electrónica», e outra oferecer o mesmo curso com a designação de «eletrotecnia eletrónica», uma base de dados nacional dos cursos oferecidos em Portugal registará dois cursos com nomes semelhantes. O mesmo sucederá num motor de busca da internet.
As designações de arruamentos, logradouros públicos e edifícios também podem ser opcionalmente maiusculizadas (AO, Base XIX, 2.º, i) .
Assim, «Rua de Santo António» terá oito formas correctas na “ortografia unificada”:
Rua de santo António, Rua de santo Antônio,
rua de Santo António, rua de Santo António,
rua de santo António, rua de santo Antônio.
Se se considerar termos e expressões complexas encontramos também multigrafias correctas. Um termo como «perspectiva cónica» passa a ter quatro formas correctas,
perspetiva cónica, perspetiva cônica.
Mas um termo como «dactiloscopia electrónica» terá oito:
dactiloscopia eletrónica, dactiloscopia eletrônica,
datiloscopia electrónica, datiloscopia electrônica,
datiloscopia eletrónica, datiloscopia eletrônica.
O impacto da “multigrafia unificada do português” na estabilidade e integridade dos vocabulários e terminologias de especialidade, nomeadamente, de áreas científicas e tecnológicas, é completamente desconhecido mas, previsivelmente, catastrófico.
Nos domínios fundamentais da normalização terminológica da língua portuguesa (domínio em que a unificação luso-brasileira é impossível), da indexação e catalogação documental e bibliográfica e do processamento informático da língua — domínios em que o País não pode deixar de estar na vanguarda do desenvolvimento científico, cultural e tecnológico — as consequências da aplicação do AO serão dramáticas e trarão custos financeiros e culturais incalculáveis (que ninguém acautelou).
PS. como foi observado argutamente pelo comentador Américo Tavares em 10/6, a quem agradeço o trabalho de cálculo, a expressão «Electrotecnia e Electrónica» passará a ter 32 (trinta e duas!) formas correctas na nova ortografia unificada. A lista completa, ou a "listagem", como agora sói dizer-se, encontra-se no texto do comentário.
versão extensa de artigo de opinião publicado no Jornal de Notícias de 15 de Junho de 2008