O fascismo está inscrito na mentalidade portuguesa. Mal se fala da língua portuguesa, desata-se a usar maiúsculas, a falar da pátria, da expansão e só não se fala da conquista e colonização de outros povos porque nos tempos que correm isso é um bocadito excessivo. Como acontece com todas as mentalidades fascistas, ergue-se um facho não apenas para ser seguido cega e acriticamente, mas também para esconder as misérias. Itália era uma miséria europeia, quando inventou a força do fascismo e o orgulho italiano; a Alemanha estava num caos económico e social, quando fingiu descobrir que era detentora de uma raça e de uma língua ímpares, que conduziriam os destinos da civilização por mais de mil anos.
A suprema importância universal da língua portuguesa é uma treta. Uma treta reveladora de mentalidades e atitudes e que mostram quão longe estamos de ser uma sociedade genuinamente democrática e livre, sem atavismos fascizantes — hoje em dia baseados na língua, porque não o podem ser nas caravelas. Os seres humanos são seres humanos — falem ou não português e escrevam ou não óptimo com p. E cada ser humano, em si, é mais importante do que quaisquer sonhos de conquistas futuras, de grandiosidades épicas, de poderios imaginários. O que importa é dar aos portugueses as mesmas oportunidades para se realizarem do que qualquer outra pessoa em qualquer outra parte do mundo — como matemáticos, poetas ou filósofos, físicos, pianistas ou jornalistas, padeiros, taxistas ou empresários. O resto são atavismos que têm precisamente o efeito contrário, atravancando o país.
País que poderia perfeitamente ter desaparecido há 400 anos sem que as principais realizações artísticas, científicas e políticas da humanidade tivessem sido substancialmente diferentes. As grandes realizações da humanidade, com valor universal e universalmente reconhecidas, não são portuguesas. Além dos Descobrimentos, nada demos à humanidade que seja reconhecido. Somos um povo sem grandes realizações, como os suecos, os dinamarqueses ou os corsos — mas qual é o problema disso? Porquê andar a sonhar com o quinto império, que não é outra coisa senão o colonialismo salazarista temperado com versos épicos de gosto duvidoso?
Seria mais avisado assumirmos o que somos: um pequeno país, no seio da Europa, com imensas dificuldades em criar riqueza e avesso a uma mentalidade livre e democrática. Assumir isso seria o primeiro passo para conseguirmos, com boa vontade e realismo, cooperando entre todos, transformar um pequeno país numa sociedade justa, de bem-estar, desenvolvida, que ofereça aos seus membros as melhores condições para desenvolverem os seus talentos e darem assim as suas contribuições para o desenvolvimento da humanidade.
Precisamos de melhor ensino, melhores políticos, melhor pensamento científico, filosófico e artístico. Nada disto se consegue enquanto continuarmos a tapar o sol com a peneira da ilusória pátria grandiosa da língua portuguesa.
in Público, 3 de Junho de 2008