Texto publicado no Diário de Notícias do dia 9 de maio de 2016, em que se faz um balanço sobre o Acordo Ortográfico de 1990 nos ensinos básico e secundário de Portugal, cinco anos letivos decorridos sobre sua aplicação oficial. Entre as vozes críticas, destaca-se a do atual presidente da Academia das Ciências de Lisboa... entidade que o negociou e propôs, com a Academia Brasileira de Letras, e que foi oficialmente subscrito pelos oito países da CPLP.
[Ver também: Acordo Ortográfico sob polémica presidencial]
Quando as aulas terminarem, nas primeiras semanas de junho, terão decorrido cinco anos letivos desde que o Acordo Ortográfico (AO) de 1990 foi aplicado nas escolas portuguesas. Começou em 2011-12, período que poderá parecer curto mas, na prática, equivale a dizer que há centenas de alunos do 1.º ao 5.º anos de escolaridade, totalizando mais de meio milhão – cem mil por ano letivo –, para os quais corretamente, em Português escreve-se sem consoante muda antes da letra t.
Este contingente é provavelmente o maior argumento contra a ideia lançada por Marcelo Rebelo de Sousa durante a recente visita a Moçambique de se «repensar» este tema. Mesmo o filólogo e presidente da Academia de Ciências [de Lisboa] Artur Anselmo, crítico convicto da nova ortografia, já admitiu em declarações ao jornal Público que uma revisão, em vez da extinção pura e simples do AO, poderá ser uma opção mais sensata. «É preciso ter cuidado, porque os problemas que decorrem do ensino da nova ortografia nas escolas ao longo dos últimos anos são gravíssimos», avisou.
Para Edviges Antunes Ferreira, presidente da Associação de Professores de Português (APP), reduzir a zero tudo o que se fez para aplicar o Acordo nas escolas nos últimos cinco anos seria uma ideia pouco menos do que inconcebível. «As consequências seriam gravíssimas, a vários níveis», defende ao DN.
«Aliás, é impensável neste momento voltar-se atrás. As crianças que vão entrar no 6.º ano de escolaridade já aprenderam a escrever segundo o novo Acordo, já ganharam práticas de escrita. Seria gravíssimo, seria brincar com as suas capacidades, querer obrigá-las a escrever como os pais e os avós escreviam.»
A presidente da APP ressalva que esta associação «nunca tomou posição contra ou a favor» da aplicação do AO. Mas lembra que este, «bem ou mal, está implementado». De resto, sustenta, o "debate" agora relançado passa ao lado das novas gerações: «A contestação vem de pessoas que já têm mais de 40 anos, que não se apercebem das consequências que teríamos se voltássemos atrás.»
Mas também há entre a classe docente quem defenda com igual convicção que as consequências da vigência do Acordo estão a ser bem piores do que seria a sua eventual revogação. «Mais dramático do que aquilo que está a acontecer será difícil», diz ao DN Rosário Andorinha, presidente da Associação Nacional de Professores de Português (Anproport), criada em janeiro de 2015, que no mês passado enviou a Marcelo Rebelo de Sousa um documento pedindo-lhe para lançar uma «reflexão e debate» sobre este tema. «O que aconteceu é que estamos a escrever com mais erros. Já não se sabe se é concessão ou conceção, «para [do verbo: parar] ou para. O que tem vindo a aumentar, como consequência do Acordo, é de facto o erro ortográfico», sustenta.
Num recente manifesto pela revogação ou «profunda» revisão do Acordo, esta associação apresentou como contraponto aos alunos que só conhecem a nova ortografia os «muitos mais» que tiveram de se adaptar a ele. Serão cerca de um milhão só no ensino não superior, os estudantes que começaram a escrever ainda de acordo com as antigas regras. Teoricamente, teriam começado a ser treinados para cumprir o Acordo a partir de 2011-12. Algo que nem sempre terá sucedido.
«Não nos obrigavam a usá-lo»
Beatriz Teodósio tem 18 anos e está prestes a terminar a escolaridade obrigatória. Quando o Acordo foi introduzido estava no 9.º ano de escolaridade. Mas até agora, conta, nunca teve de se preocupar com o tema. «Nunca o apliquei», assume. «Não nos obrigavam a fazê-lo na escola, até porque muitos professores também não concordavam com ele», explica. Agora, prepara-se para realizar os exames nacionais do 12.º ano. E como, desde o ano passado, usar a antiga ortografia nas provas dá direito à marcação de erros e penalizações na nota, terá uma preocupação adicional: «É complicado, passados nove anos, começar a escrever com o Acordo e ser descontado se não o fizer», desabafa, antes de admitir que também «é verdade» que os alunos que só conhecem o AO poderão sentir as mesmas dificuldades se as regras mudarem.
Edviges Antunes Ferreira, que além de professora é corretora de exames do secundário, confirma que já teve, «com grande custo», de marcar erros em palavras que não respeitavam a nova ortografia. Mas considera que esse facto está longe de servir de argumento contra o Acordo. «Não consigo entender que professores de Português tenham deixado os seus alunos chegar aos exames sem os preparar para o Acordo», critica. «Na associação, no passado recente, fomos críticos de muitas medidas do Ministério da Educação, fizemos muitos pareceres que não tiveram qualquer impacto mas, no final, respeitámos as regras em vigor. Somos funcionários públicos». Já Rosário Andorinha defende que, mesmo entre os docentes críticos do Acordo, a regra é respeitar essa separação: «Sabemos aquilo a que estamos obrigados em meio académico, em sala de aula», diz, apontando outros fatores externos como justificação das «oscilações» dos alunos em relação à ortografia, incluindo a influência de familiares que «não utilizam» o AO. «A verdade é que, desde escritores a académicos e ao cidadão comum, são muitos os que não o aplicam porque não se reveem nele», defende.
«É obvio que teria impacto»
Os editores, lembra Paulo Gonçalves, porta-voz da Porto Editora, líder do mercado escolar, também estiveram longe de apoiar a ratificação do AO de 1990. «É importante que se tenha isso presente para que, de hoje para amanhã, não surjam ideias de que as mudanças são por livre-arbítrio dos editores», explica. «Durante anos, se houve alguém que se opôs ao Acordo foram os editores. E só passaram a utilizar o Acordo a partir do momento em que foi adotado pelo governo e pela Assembleia da República», frisa.
Mas hoje, acrescenta, convém que antes de serem dados passos para reverter essa decisão seja feita uma «cuidadosa reflexão» sobre as consequências associadas. «É óbvio que tem impacto. Qualquer alteração ou decisão política que represente alterar orientações, programas e a ortografia tem forçosamente impactos e obriga a mudanças em todos os recursos didático-pedagógicos que existem», confirma. «E isto é válido independentemente do suporte. Há recursos em suporte físico, como os livros escolares, e depois há os recursos educativos em suporte digital, em que há vídeo mas está sempre presente algum suporte de texto.»
O AO vigora em Portugal, Brasil, Timor-Leste, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Está ratificado, mas não é aplicado, na Guiné-Bissau, faltando a ratificação de Angola. Em Moçambique, foi aprovado pelo governo e falta a ratificação pelo parlamento. A Porto Editora está presente em dois mercados – Angola e Moçambique – onde os livros escolares continuam a utilizar a antiga ortografia. O seu porta-voz não encontra muitos motivos, tendo em conta a experiência dos últimos anos, para acreditar que a maioria dos professores e alunos portugueses estejam a ter dificuldades para aplicar as novas regras. «Não temos esse feedback». A «esmagadora maioria» dos autores de ficção representados pela editora já publica segundo o AO.
O Acordo de 1990 vigora também de forma obrigatória em todos os documentos administrativos, dos tribunais às câmaras municipais.
In Diário de Notícias do dia 9 de maio de 2016.