Adiar a entrada em vigor do acordo, às portas da sua data inicial, é diplomaticamente pouco sério, quando se trata de aplicar uma decisão do mais alto nível da CPLP
Trabalho em três instituições nas áreas de docência e pesquisa - em Angola, Brasil e Portugal - e, como as matérias são idênticas, procuro usar os mesmos textos, até porque minhas pesquisas têm incidências nas aulas. Não consigo. Em virtude das diferenças ortográficas sou obrigado a modificar os textos para cada um dos casos.
No Brasil é erro usar consoantes mudas e ainda recorrem ao trema por cima do U. Em Portugal usam consoantes mudas e não usam K, W, Y. Em Angola estas três letras internacionais são largamente usadas.
O meu trabalho de campo em Angola decorre no Kunene, segundo designação oficial angolana (e internacional), mas quando mando textos para Portugal, já sei que vão mudar para Cunene.
Se eu transcrever para meus alunos na Universidade do Estado da Bahia, um autor português ou africano que tenha feito referência a alguma de suas acções, terei de cortar o C mudo. Mas se eu disser que um intelectual baiano fez uma palestra ótima, em Angola ou Portugal acham que falta um P.
Estas discrepâncias ortográficas vão aumentar com o surgimento de novas palavras, produto das inovações tecnológicas ou de influências inter-"media".
Além das diferenças no uso das consoantes e sobre três letras importantes, a ortografia em português apresenta também um elevado número de acentos, parte dos quais desnecessários. A língua inglesa, por exemplo, não tem nenhum acento.
Não é de hoje que se fazem esforços para unificar a ortografia da nossa língua, como forma de mantê-la viva com sinais de comunicação idênticos para contextos culturais diversificados, inclusive nos sotaques e expressões locais.
Em nenhuma das tentativas de acordo se procurou unificar pronúncias ou anular frases típicas.
Após medidas unilaterais de Portugal e Brasil de 1911 ao final dos anos 30 do século passado, na década de 40 finalmente foi assinado - e mais ou menos cumprido - o Acordo que modernizava e aproximava a escrita da fonética. Foi quando farmácia deixou de ser pharmacia.
O primeiro lusófono
Naquela época surgiram saudosistas para se oporem. Já vários séculos antes, quando D. Diniz, Rei de Portugal e primeiro grande lusófono, oficializou a língua portuguesa em detrimento do latim, os tradicionalistas não gostaram.
D.Diniz tomou a medida no âmbito de um grande programa cultural, que incluiu os Estudos Gerais de Coimbra e o que hoje seria considerado como a sua vertente ambiental, o Pinhal de Leiria.
Ao ser fundado oficialmente, o nosso idioma estava localizado em Portugal, país que na altura talvez nem tivesse um milhão de habitantes. Hoje são cerca de duzentos e trinta milhões os habitantes do espaço lusófono e entre eles os portugueses são cerca de cinco por cento.
A maioria é brasileira, com 180 milhões, vindo Moçambique em segundo lugar com aproximadamente vinte milhões e Angola em terceiro com quinze. Porém, em termos de língua materna, Portugal está em segundo, pois todos os seus dez milhões de cidadãos têm o português como tal.
Na mesma ordem de ideias, Angola aparece em terceiro. Segundo o UNICEF na década passada, 28 por cento dos angolanos tinham o português como língua materna, número que deve ter avançado para 30 por cento mais recentemente e que, se prosseguir nesse ritmo, vai tornar-se o maior grupo linguístico angolano, já que o grupo que ocupa hoje tal posição tem 32 por cento de falantes.
Portanto, mais de quatro milhões de angolanos têm o português como língua mãe, quase a população da Suíça.
A situação do português em África não se limita aos que têm língua materna. Voltando ao exemplo angolano, oitenta por cento usa esta língua diária e fluentemente, contribuindo até com novas expressões.
Este crescimento foi conseguido após as independências, onde expressões culturais comuns a todas as comunidades, as administrações centrais, os programas nacionais de alfabetização (mesmo quando conduzidos em bases bilíngues), os imperativos do mercado e as hierarquias militares (sobretudo nos casos de guerra) difundiram o português.
Se somarmos todos os africanos que o têm como língua materna ou primeira língua de comunicação, provavelmente Portugal fica em terceiro, o que deve ser motivo de orgulho para o país onde a língua foi fundada.
Infelizmente alguns não apreciam este dado.
Nestes termos, o português é uma língua de impacto internacional, com maior expressão na América, seguido pela África, depois a Europa e uma pequena presença na Oceania.
A partir dos anos80 do século transacto, representantes dos PALOP passaram a ser naturalmente associados às reuniões das Academias de Lisboa e Rio de Janeiro e, em 1990, chegou-se à assinatura de um Acordo Geral, que suprime as consoantes mudas, corta alguns acentos e introduz os K W Y.
Os signatários foram os respectivos Governos, menos Timor-Leste que ainda não era independente. Em 1998 assinou-se um protocolo modificativo e, cinco anos mais tarde, uma decisão dos Chefes de Estado da CPLP determinava que com três ratificações o Acordo entraria em vigor.
Evolução gradual
Em finais de 2006, Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe tinham ratificado e, nos meios próximos à CPLP começou a trabalhar-se para iniciar a transição em 2008, segundo uma formula que permitiria inicialmente o recurso às duas ortografias, com evolução gradual para a nova.
Há poucas semanas dizia-se em Luanda que a Assembleia Nacional receberia o texto para ratificação.
Portugal é o fiel depositário de todos esses documentos legais.
O Brasil começou a tomar medidas para adequar os livros didáticos à nova situação a partir de 2009.
Esta operação, seja em que país for, não apresenta dificuldades de maior. Os livros didáticos são oficializados para períodos que vão de quatro a dez anos, consoante os países, mas as tiragens são anuais, para facilitar atualizações, não apenas gramaticais ou linguísticas mas em todas as ciências.
Por exemplo, o programa genoma humano modificou os livros de Biologia em todo o mundo.
Mas em Portugal surgiram protestos das sociedades de escritores, editores, livreiros e seus apoios políticos. A campanha de pressões pode levar as autoridades portuguesas a pedir moratória, diz-se que por dez anos...
Os argumentos são de duas ordens. Por um lado não teria havido debate suficiente e por outro, segundo os editores lusos, o acordo pode fazer perigar as posições das editoras portuguesas em Angola e Moçambique.
Houve sem dúvida pouco debate ou ele não foi muito alargado, embora José Mário Costa, que dirige em Lisboa o respeitado sítio Ciberdúvidas (com patrocínio oficial) ache que se falou bastante do acordo durante quase vinte anos e que, portanto, tal reclamação parece vontade dilatória.
Quanto à presença portuguesa nas edições angolanas e moçambicanas, claro que ela vai depender da sua competitividade, traduzida em termos de qualidade-preço e das diversas legislações. Mas não é muito simpático propor uma fórmula de penetração comercial com base na estagnação linguística.
Por detrás destas considerações emergem outros problemas:
Adiar a entrada em vigor do Acordo, às portas da sua data inicial, é diplomaticamente pouco sério, tanto mais que se trata de aplicar uma decisão do mais alto nível da CPLP, entidade que os escritores e editores portugueses sempre disseram respeitar e que os sucessivos Governos de Portugal sempre afirmaram como prioridade absoluta;
O Brasil e os países africanos que ratificaram (ou venham a ratificar), emitiram documentos legais que, segundo suas Constituições, devem ganhar vigência.
E agora?
artigo de opinião publicado na revista "África 21" de Dezembro de 2007