Que terá esta ortografia, ainda em vigor, de tão dogmaticamente divino que não pode ser alterada?
É estranho tanto apego, até porque nenhum, das muitas centenas de escritores que publicaram as suas obras durante séculos, até 1945 (nem Gil Vicente, nem Camões, nem Vieira, nem Camilo, nem Eça, nem Pessoa...), escreveu nesta «intangível» ortografia que, aliás, sucedeu a outras, e teve uma guerrilha semelhante à de 1990. Além disso, a de 1990 já foi ratificada e decretada pelo presidente da República Mário Soares, e publicada no Diário da República (n.º 193, de 23-8-1991).
Não há unanimidade sobre o novo acordo. Mas alguém conhece ter havido unanimidade a respeito de qualquer proposta ou lei nos domínios da política, da religião, da ciência, das leis do trabalho, da cultura ou da educação, do que quer que seja?
Uma coisa positiva existe em toda esta controvérsia: a evidência de que a língua é qualquer coisa que pertence a todos nós, que tem muito que ver com a nossa identidade, e dai o receio fundado/infundado de estar a ser ofendida.
Acontece, porém, que a ortografia não modifica a língua e, infelizmente, muita gente, mesmo culta, ainda não se apercebeu disto.
Como é sabido, e não é de mais repeti-lo, línguas houve (turco, albanês, vietnamita) que substituíram completamente a sua ortografia (árabe, grega, chinesa) pela do alfabeto latino, sem qualquer drama de vulto, e com grandes vantagens, sobretudo para a comunicação internacional e expansão das suas culturas.
Que medo então da pequena cosmética do novo acordo, aliás muito inferior à radical alteração que fez o tão «estimado» acordo de 1945 em relação à ortografia anterior? Até porque a escrita ortográfica actualizada é a melhor garante da conservação das múltiplas variedades de pronúncias nacionais e regionais (maximamente de uma língua, como a portuguesa, espalhada pelas culturas do mundo inteiro). Se não se entender uma determinada variedade prosódica, entende-se, certamente, a sua escrita.
Exemplo disso é o que ocorre, não poucas vezes, nas grandes assembleias internacionais, em que o tradutor/intérprete traduz para os auscultadores dos delegados os discursos, em inglês, ou outra língua. Acontece, porém, com frequência, que a sua pronúncia é tal que muitos, de diversificados países, embora sabendo essas línguas, não entendem tudo o que ele diz. A questão só fica resolvida quando é fornecido o texto escrito... Assim, a escrita ortográfica comum respeitou essa e quaisquer outras pronúncias, mais, ajudou-as a manterem-se, e evitou confusões.
E não se replique com o argumento ingénuo de que certas palavras ou acentuações estão de tal maneira radicadas, que seria violência cultural inadmissível alterá-las... Mas, para resolver isso é que já há muito existem na ortografia, até na actual, as formas duplas como «ouro» e «oiro», «cota» e «quota», etc., e que outras novas (são necessárias poucas), passem a existir, como acontece também em outras línguas.
O inexplicável ciúme em relação aos brasileiros, que chegou a acusar os membros da delegação portuguesa de «traidores» por cedências ao Brasil, por exemplo na questão da supressão das consoantes mudas, ignora (?) que já em 1746, o português Luís António Verney no Verdadeiro Método de Estudar em carta-capítulo dedicada à ortografia defende, como nos acordos ortográficos modernos, que a ortografia deve seguir a pronúncia, embora com excepções.
Seguindo esse mesmo critério, ele já era da opinião de que se deviam suprimir as consoantes duplas quando uma não de pronunciava, a começar pelas dobradas; e que essa regra se aplicava também aos grupos: «Passando o B, digo que esta não se deve conservar senão naqueles nomes que especialmente a têm na pronúncia, como "obstáculo", "obstante", etc., mas naqueles que hoje se pronunciam sem ela, parece-me escrúpulo demasiado».
E quanto ao tão falado caso do ato, palavra em que a ditongação não se ouve (e a situação de acto é semelhante) sentencia: «Ato é mui boa palavra e todos a entendem.»
E que dizer, em relação à hipótese que foi muito discutida e objecto de grande gáudio humorístico, em 1986, de várias supressões do H incluindo a palavra homem (a honra machista!)? Verney afirma: «Não condeno quem escreve Homero, Heródoto, Herodes, etc. ainda que estes três e outros semelhantes que estão já muito em uso, podem mui bem escrever-se sem H, o que até os nossos italianos já fazem».
Servem estes exemplos do Verdadeiro Método para mostrar que os brasileiros não podiam antecipar-se aos portugueses sobre os aspectos ortográficos em apreço, pois a sua Literatura, (e o mesmo se dirá das suas Sociedades e Academias Filológicas), segundo a mais abalizada opinião, a de António Cândido, começou por volta de 1750, e a primeira gramática que elaboraram, Língua Nacional, de António Pereira Coruja, é de 1835, bem posterior às propostas de Verney. Se a cronologia servisse para esta guerrilha, haveria que afirmar-se que, afinal, foram os brasileiros a aprenderam alguma coisa de Verney e dos debates filológicos portugueses.
Acrescente-se que é difícil entender a desconfiança, ou ciúme, em relação ao Brasil, pois o mais lógico e proveitoso seria tomar a atitude contrária, a do orgulho de ter sido possível que a nossa língua se tenha ali constituído uma variedade enriquecedora, como, certamente, com o tempo, irá acontecer com Angola, Moçambique, etc.
Variedades estas quenão prejudicam a unidade, antes a ampliam e enobrecem. Daí a importância de uma escrita comum unificada, respeitadora dessas e de outras variedades da língua.
Razão tinha o linguista Celso Cunha para afirmar: «Chega-se assim à evidência de que, para a geração atual dos brasileiros, cabo-verdianos, angolanos, etc., o português é uma língua tão própria, exatamente tão própria, como para os portugueses (...) A luta pela pureza do idioma foi o anseio do século XIX: hoje, não pode ser mais o nosso principal objetivo: nossa luta tem de ser para impedir a fragmentação do idioma comum» (Uma Política do Idioma, p. 33).
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