A influência de Portugal no Oriente não tem sido até hoje devidamente apreciada num conjunto, em toda a sua extensão e em toda a sua intensidade.
Tem-se escrito muito sobre os feitos gloriosos dos seus navegadores e conquistadores, sobre os actos heróicos dos seus capitães e governadores. Tem-se descrito graficamente o seu largo trato comercial, os seus vastos empórios, os labores penosos e o luxo deslumbrante de seus filhos nas colónias. Também se tem criticado severamente, pela orientação moderna, a sua política de crueldade e intolerância e os excessos do seu zelo religioso. E geralmente se julga que essa influência foi restrita, superficial, efémera.
A verdade, porém, é que a acção civilizadora de Portugal nos seus antigos domínios e nos povos com que esteve em contacto foi, em vários sentidos, muito dilatada, muito funda e muito duradoura, do que ainda presentemente há vestígios numerosos e evidentes, e argumentos irrefragáveis.
O Dr. Heyligers reconhece «que a influência do elemento português exercida no Arquipélago Indiano» – e o mesmo se pode dizer de diversas outras partes – «foi de uma força absolutamente particular», e abrange essa influência em três capítulos: população e raças, costumes, e língua. Mas há outros pontos de não somenos valia e que são factores importantes de civilização: o comércio de novos objectos, a flora, a fauna, a agricultura e indústrias.
Nenhuma nação colonial tem menos egoísmo de raça e mais tendência à identificação com os indígenas do que a portuguesa. O perspicaz estadista Afonso de Albuquerque não achou melhor meio de enlaçar o Oriente com o Ocidente e de consolidar o império que ia adquirindo, do que a fusão dos conquistadores com os conquistados, e para isso envidou os seus esforços. E se a sua atilada política não foi persistentemente seguida ou topou com graves dificuldades, nem por isso deixou de produzir consideráveis resultados. Ainda ao presente existem em várias regiões asiáticas grupos, mais ou menos numerosos, dos que se gloriam de descendentes dos primeiros civilizadores europeus dos tempos modernos, da denominação de portugueses e de nomes e apelidos lusitanos; e têm por este motivo direitos e regalias superiores aos de outras classes indígenas, ou os mesmos que os europeus, como em Maluco.
É sobretudo pela influência que a língua portuguesa exerceu, e ainda exerce, em grande parte da Ásia que se aquilata o alto valor da acção civilizadora de Portugal, toda especial e sem paralelo.
É bem natural que a língua do conquistador seja a língua oficial, e os indígenas se vejam na necessidade de a aprender e falar. Mas isto dura enquanto o país verga sob o jugo estrangeiro. Assim notamos que a Holanda, que dominou em diversas partes da Índia, não deixou quase nenhuns vestígios da sua língua, a não ser uma ou outra palavra em algum idioma.
É também natural que os descendentes dos conquistadores continuem a usar, especialmente sendo em grande número, o idioma paterno, por longo tempo depois de cessar o domínio nacional, como acontece quanto ao português em Bengala, e em ambas as costas da península, em Malaca e em Singapura.
Mas admira muito o fenómeno que se dá em Ceilão. Ali nem só os descendentes dos portugueses, mas ainda os filhos dos holandeses, que dominaram por igual período como Portugal, e em geral todos os euroasiáticos, e até alguns indígenas, têm o português por língua materna, além doutros, europeus e nativos, que o aprendem por conveniências comerciais, domésticas e religiosas.
E admira ainda mais, e parece ainda mais estranho, que uma classe de indígenas, que não têm nas suas veias uma gota de sangue português, tenha repudiado a língua própria e adoptado, juntamente com a religião cristã, a portuguesa como materna, facto que se observa na presidência de Bombaim e em algumas partes da costa de Malabar.
É pasmosa a expansão que o português teve na Ásia nos séculos passados. «A história dos descobrimentos e das conquistas portuguesas, diz muito bem, e prova-o com muita erudição, o Dr. Schuchardt, é também em geral a história da propagação da língua portuguesa». E pode-se acrescentar: a história da evangelização portuguesa é igualmente, até certo grau, a história da difusão do idioma português. Considerava-se então que o português era a lingua cristã por excelência e um indício de cultura europeia.
Falava-se português, puro ou crioulizado, por toda a Índia, na Malásia, em Pegu, no Bramá, em Sião, em Tonquim, na Cochinchina, na China, em Comorão da Pérsia, em Bassorá da Turquia, em Meca da Arábia. E falavam-no não somente os portugueses e os seus descendentes, mas hindus, maometanos, judeus, malaios, e os próprios europeus doutras nacionalidades, entre si e com os indígenas. Serviam-se dele os missionários holandeses nos seus domínios, e ainda hoje o empregam os ministros protestantes ingleses na ilha de Ceilão. Era pois por longo tempo a língua franca do Oriente.
É verdade que o português já não tem tamanha extensão e está agora muito circunscrito. Cessou de ser língua franca; e os crioulos, uns estão extintos, outros agonizam, outros talvez, pelo perpassar de séculos, venham a desaparecer. Mas quando porventura o português não for falado no Oriente, os vocábulos da bela língua de Camões, adoptados e naturalizados em uma centena dos idiomas vernáculos, não perecerão jamais, mas perdurarão juntamente com os mesmos idiomas, e serão, na sua linguagem eloquente, um monumento vivo e constante da dominação e civilização portuguesa.
Da "Introdução à Influência do Vocabulário Português em Línguas Asiáticas", Coimbra, 1913, pág. XV e ss., in "Paladinos da Linguagem", 2.º vol., Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1921.