1. Por que, antes de sair de casa, nos olhamos no espelho?
Respostas possíveis: porque queremos alinhar a nossa aparência; porque queremos verificar se estamos bem; porque nos preocupamos em passar uma boa imagem; etc.
Você não espera ver só o seu reflexo no espelho. Você está preocupado com a beleza.
2. Quando você pede um prato desejado há muito tempo num bom restaurante (e caro), o que se espera da comida?
Respostas possíveis: espera-se que ela seja preparada com os melhores produtos; espera-se que ela esteja bem empratada e seja bem gostosa; espera-se que ela valha o preço e surpreenda nosso paladar; etc.
Você não espera só se alimentar. Você espera a satisfação, o deleite.
3. Se alguém lhe pedisse para produzir um livro de como jogar bem futebol, você selecionaria qual jogador como referência máxima para esse manual: Serafim ou Pelé?
Única resposta possível: Pelé.
Você não espera ver só as frias técnicas futebolísticas, e sim os movimentos mais inacreditáveis deste esporte, em seu nível mais elevado.
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Percebe que, nos três cenários, existe aquele sentimento do «Para ser bom, isso DEVE SER assim»? Percebe que há uma espécie de obrigação moral ou necessidade potencial nas ações?
É isso. A dimensão deôntica das coisas está relacionada ao «dever ser».
Se você assistiu ao documentário da Netflix The greatest night in pop, mostrando os bastidores da canção "We are the world", entende exatamente o que estou querendo dizer.
Quando alguém se propõe a fazer algo grandioso, algo universal, algo atemporal, algo realmente indelével e memorável, é preciso repetir, repetir, repetir, repetir, repetir... até ficar como DEVE SER.
– Ok, Pestana. Mas aonde você está querendo chegar
Em matéria de "norma" (linguística), que é o conjunto de fatos linguísticos em comum produzidos e compartilhados por uma comunidade de usuários da língua, existem dois caminhos para a sua sistematização:
1) a descrição do uso da língua (seja na fala, seja na escrita) da maneira como ela é efetivamente usada no dia a dia, em situações corriqueiras, ordinárias; e
2) a descrição do uso da língua (seja na fala, seja na escrita) da maneira como ela é usada em situações especiais, extraordinárias.
Assim como tudo na vida, a língua é um produto humano e, portanto, está sujeita ao valor deôntico que os seres humanos damos às coisas – isto é, ao «isso tem que ser assim, e não assado», ao «é necessário buscar o melhor, e o melhor tem que obedecer a certos parâmetros», ao «é um dever, uma obrigação, uma necessidade que algo seja bom, que entreguemos o nosso melhor».
Se assim não fosse, nem haveria motivo para existir a profissão de revisor, ou editor, ou preparador de textos, ou professor de português.
Se assim não fosse, não existiria um Homero, um Dante, um Shakespeare, um Camões, um Cervantes, um Goethe, um Victor Hugo, um Mark Twain, um Dostoiévski, um Machado de Assis...
E aí eu lhe pergunto: no âmbito da norma linguística, qual é o melhor uso que se faz da língua, qual é o modelo de uso almejado por quem aspira a uma qualidade linguística superior, qual é a real dimensão deôntica da linguagem humana?
Se você tivesse que escolher uma fonte para dela extrair os melhores modelos de uso que já se fez e se faz da língua para recomendá-los, qual escolheria: a linguagem jornalística ou a linguagem literária?
Antes de responder, permita-me uma reflexão.
A linguagem jornalística é, em geral, produzida a toque de caixa devido à velocidade das notícias que precisam ser veiculadas. Seu vocabulário é limitado porque a linguagem é denotativa, informativa, utilitarista.
A linguagem literária, por sua vez, demanda tempo de cultivo — nela se esgotam todas as possibilidades expressivas da língua, apresentando forma e conteúdo ricos, notáveis.
Em qual linguagem se gasta tempo suficiente para "cultivar" a linguagem, para esmerar, para polir, para fazer valer o "dever ser", antes da publicação do texto?
Reflita sobre isso.
Em 1968, o linguista Aryon Dall'Igna Rodrigues publicou um artigo intitulado "Problemas relativos à descrição do português contemporâneo como língua padrão no Brasil". Nele o estudioso deixa claro que a norma culta escrita, que passaria a ser tomada como a norma-padrão, deveria se basear na linguagem literária contemporânea para uma descrição adequada do padrão ideal (deôntico) a servir como norma de referência. No entanto, a partir da década de 1970, com o projeto NURC, as intenções primeiras (descrever a língua falada de pessoas do cenário urbano com diploma de nível superior para o estabelecimento duma norma culta falada) foram, aos poucos, redefinidas, de modo que, desde 1985 em diante, com Mário Perini dizendo que a norma-padrão deveria se basear apenas nas linguagens jornalística e técnica, algumas gramáticas normativas feitas por linguistas (Perini, 1995; Bagno, 2012; Faraco e Vieira, 2023) escantearam de vez a linguagem literária como base para o estabelecimento do padrão normativo. Num país como o Brasil, que infelizmente não valoriza tanto a sua cultura letrada (os tristes números mostram isso) e cuja linguagem jornalística tem se aproximado cada vez mais da modalidade falada da língua visando a um público cada vez menos afeito à boa literatura, o «dever ser» passou a ser deteriorado por uma visão de mundo que vem trazendo consequências irreparáveis para o ensino de gramática no país. Para o aprofundamento dessas questões de norma linguística, recomendo esta dissertação de mestrado: O (pseudo)abismo entre a norma-padrão contida nas gramáticas normativas do português e a norma culta escrita do português brasileiro contemporâneo.
Finalizo meu texto com as palavras do linguista Eugenio Coseriu, extraídas do seu exemplar texto "A língua literária":
«... a língua literária representa no grau mais alto a dimensão deôntica (o "dever ser") da língua; e a gramática normativa é a manifestação metalinguística explícita desta dimensão.»