«Na página 55 escrevi em letras maiúsculas “PENSAR É ESTAR DOENTE DOS OLHOS”, por cima de um poema de Alberto Caeiro. Imagino que tenha sido a professora a fazer esta citação para nos explicar a filosofia do heterónimo mais simples, mas tão maravilhosamente complexo de Pessoa. E a verdade é que, ao mesmo tempo que escrevi a frase nas margens do livro, a tatuei no meu cérebro porque é, há anos, a minha favorita.»
Encontrei um velho livro de Português no sótão de casa dos meus pais. Português B, especificava a capa feia, decorada em tons de castanho. E este “B” sempre me pareceu insultuoso. Uma espécie de inferiorização da matéria, assim como se os alunos de Ciências precisassem apenas de um “portuguesinho” que, na melhor das hipóteses, ascendesse ao lugar de razoável.
Espero que, nos 20 anos que separam o hoje do tempo deste livro, esta classificação tenha desaparecido e que agora, nas nossas escolas, todos os alunos aprendam português sem letras por diante. O português de Saramago, de Vergílio Ferreira e de Eça de Queirós. Mas também o português de Camilo Castelo Branco, que, nos meus tempos de aluna, estava reservado aos abençoados com Português A. E antes que me digam que podia ter simplesmente lido o livro, adianto já que o fiz. Mas nunca tive a professora Adélia a chamar-me a atenção para os detalhes, a assinalar passagens e a mostrar os significados que, com 16 anos, fui incapaz de perceber sozinha. Mas que me agarrei ao Amor de Perdição que encontrei em casa dos meus pais, agarrei. E depois, num tempo em que a Wikipédia ainda não fechava caixas de Pandora, fui pesquisar sobre o autor e concluí que a vida dele dava um romance com melhor argumento do que qualquer outro que ele próprio pudesse escrever.
Foi Camilo Castelo Branco que me fez, pela primeira vez, acreditar no chavão de que todos os génios são, pelo menos, parcialmente loucos. Completamente errante, casando aos 16 anos e separando-se logo depois, passou a vida a apaixonar-se aqui e acolá, mantendo relações amorosas com mulheres virginais, bailarinas de passado errante e até com uma freira. O fogo da paixão acabou por fazê-lo seduzir e raptar uma mulher casada e, depois de detido pela polícia, foi presente a tribunal pelo crime de adultério. Já agora, como curiosidade, deixem-me dizer-vos que o juiz que o absolveu foi José Maria Teixeira de Queirós, que, curiosamente, era pai do maior rival literário de Camilo: Eça.
Não sou camilianista nem queirosiana porque gosto de ambos (o que, na verdade, faz com que seja provavelmente as duas coisas). Não me tirem a escrita afiada e a ironia de Eça. Não me fujam com os retratos perfeitos de época e os seus tiros sempre certeiros. Mas livrem-se de o glorificar a um ponto acima de Camilo, que, carregado de sífilis e cego pela mesma, acabou a vida com um tiro no peito quando percebeu que a cegueira era irreversível e inexorável.
Camilo foi o último dos românticos de verdade. Conduzido por paixões, participou em revoltas, tentou o misticismo e até a reclusão. Mas acabou sempre por sucumbir aos encantos femininos sem nunca encontrar a paz interior que tanto desejava. E aqui, neste livro cheio de apontamentos feitos a lápis e de post-its colados nas folhas, não existe nem uma palavra sobre ele.
É estranho folhear este manual agora. Já não sou aquela Carmen, o meu mundo alargou e o cheiro a bafio que a humidade deixou nas folhas é totalmente diferente do cheiro a excesso de adolescentes fechados numa sala que costumava acompanhar estas incursões. Mas não deixa de ser curioso perceber que, mesmo quando tudo muda, há coisas que permanecem iguais.
Na página 55 escrevi em letras maiúsculas “PENSAR É ESTAR DOENTE DOS OLHOS”, por cima de um poema de Alberto Caeiro. Imagino que tenha sido a professora a fazer esta citação para nos explicar a filosofia do heterónimo mais simples, mas tão maravilhosamente complexo de Pessoa. E a verdade é que, ao mesmo tempo que escrevi a frase nas margens do livro, a tatuei no meu cérebro porque é, há anos, a minha favorita.
Lembro-me de uma aula em que um colega meu dizia, do lugar dele, exactamente atrás do meu, que se nos fizessem ler mais um poema que fosse sobre ervas, ovelhas e flores se atirava janela fora. Acho mesmo que aqueles quadros bucólicos lhe estavam a mexer com os nervos porque, na aula de Educação Física, a correr ao meu lado, ainda me dizia que “uma pedra é só uma pedra, e é isto que um gajo vem aprender para a escola em 2003”. E eu ria-me sem ter coragem para lhe confessar que dava tudo para ser assim. Que dava anos de vida para me transformar na pessoa que olha para uma flor e a flor é tudo o que vê. Que pensar é, demasiadas vezes, o fósforo que se acende numa cabeça já regada a gasolina e que, daquele fogo, raramente nasce algo de bom.
Há muito tempo que deixei de acreditar que o cérebro é uma fénix que renasce perfeita das cinzas. Agora acredito que não há nada melhor do que prevenir o fogo. Só ainda estou a tentar perceber como é que, na inexistência de um botão de pausa, podemos fazer tal coisa. Mas adiante…
Há folhas de caderno dobradas dentro deste livro e a maioria relaciona-se com a leitura de Aparição, que, posso perceber agora, foi um sacrifício naquela altura. Curiosamente, no meio da confusão dos apontamentos, escrito com uma letra que não a minha, encontro um “o sentido da vida é que a vida não tem sentido” e fico cheia de vontade de rir. Já não sei a quem pertence esta letra, mas claramente que, há 20 anos, lhe faltava o jeito para palestras motivacionais.
E, de repente, tenho saudades da minha turma de secundário. Não sei onde está nem o que faz a maioria dos meus colegas, ainda que me lembre de tudo o que queriam ser. Será que conseguiram? E será que ainda se lembram deste livro de Português com a capa mais feia da história dos manuais escolares? Apetece-me ir procurá-los nas redes sociais e perguntar ao João se ainda acha que uma pedra é só uma pedra. Tenho vontade de ligar à Lia e perguntar-lhe se ainda sabe de cor os poemas de Miguel Torga. Talvez, com jeito, até pudesse mandar um email ao Tiago, com a fotografia da folha de apontamentos, e perguntar se aquela frase é dele e se, em caso afirmativo, se mantém refém do niilismo.
E a professora Adélia, será que ainda se lembra deste 12.º A tão antigo? Será que sabe que ainda hoje os antigos alunos se lembram dela quando lêem Fernando Pessoa? Dela e do Zé Carlos, que passava a vida a diagnosticar esquizofrenia ao poeta e que, quando lhe diziam que os heterónimos eram sinal de genialidade, respondia que genial era a mãe dele, que enrolava migas como ninguém.
Acho que vou levar este livro para casa. Apetece-me tê-lo lá. Foi bom viajar nele e lembrar um tempo em que tudo me espantava. Foi bom relembrar a minha antiga turma, mas também foi bom relembrar Eça, Camilo, Vergílio, Alberto Caeiro e Saramago. Eles não sabem, nem nunca vão poder saber, mas durante a adolescência foram meus amigos também.
— Larga os livros e vai descansar, Carmen Isabela. Amanhã tens aulas cedo e sobra-te a vida toda para ler – ralhava a minha mãe.
E, pela primeira vez, a minha mãe não tinha razão. Lá fora, há muito mais livros do que a vida que me sobra.
Artigo transcrito, com a devida vénia, do jornal português Público do dia 26 de março de 2023. Mantém-se a ortografia do texto original.