« (...) Ainda haverá tempo para socorrer esse verbo tão existencial e útil e bonito que é haver? (...)»
Que mal nos fez o verbo haver para estarmos sempre a virar-lhe as costas?
Uma das palavras irritantes, escusadas e ubíquas que se usam para não ter de escrever as letras todas do presente do indicativo do verbo haver (“há”) é «disponível».
Diz-se «está disponível» em vez de «há». Não se diz que que há um vídeo na Internet. Diz-se que «está disponível nas plataformas digitais».
O haver ou não haver é visto como grosseria reducionista. Dantes é que se perguntava se «há ou não há laranjada». Agora responde-se que sim, que há efectivamente laranjada, que está prevista nos planos de fornecimento e que, aliás, até consta no levantamento de víveres e libações... mas que ainda não está disponível.
O álbum da Banda do Casaco que se chamava Hoje Há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos foi agora reeditado com o título As Conquilhas Estão Disponíveis, Amanhã Poderão Não Estar — Mas Será Apenas Temporário.
A palavra «disponível» faz falta ao verbo dispor, que um dia ninguém saberá o que quer dizer. Confundir-se-á com o horrendo disponibilizar. E poderá passar a designar a acção de desmontar uma exposição ou falar em colocações ou desnudar um estupor. É isso que acontece quando uma palavra se abandalha: toda a língua se abandalha com ela. Esfarrapados eufemismos como “pôr o lugar à disposição” (”despeçam-me se quiserem”) transformar-se-ão em patacoadas ainda piores, como «as minhas funções estão disponíveis».
Ainda haverá tempo para socorrer esse verbo tão existencial e útil e bonito que é haver?
Ou já não está disponível?
Crónica do escritor Miguel Esteves Cardoso, incluída na edição de 23 de outubro de 2020 do jornal Público. Escrita segundo a norma ortográfica de 1945.