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Ensino // Controvérsias

Quem deve leccionar Português? Um contributo

Para não o transformar numa disciplina onde vale tudo

«(...) em nome da qualidade do ensino do Português no secundário que se deve recusar que outros colegas, oriundos de outras áreas, leccionem esta disciplina

 

Segundo o que se lê na imprensa escrita, professores de línguas estrangeiras poderão leccionar a disciplina de Português no ensino secundário, “desde que tenham ‘estágio pedagógico habilitante’ ou ‘adequada formação científica’ nestas áreas”. É esta a resolução da Direção-Geral da Administração Escolar (DGAE), entidade que igualmente propõe para a disciplina de Geografia a sua leccionação por professores de História. Tal realidade aplicar-se-á às turmas que tenham falta de professores dessas disciplinas. Não discuto a boa intenção desta proposta, mas confesso que, a implementar-se semelhante política, não se ganhará absolutamente nada no que à qualidade do ensino do Português importa.

Sendo o Portugal educativo o país que se sabe – reformas feitas a reboque das modas e modismos pedagógicos de importação e sem a devida análise do custo-benefício para os alunos e professores –, receio que a porta que se abre não mais se volte a fechar. Pode suceder mesmo que, com o acriticismo geral da classe docente (e em especial dos professores de Português), esta disciplina que, há anos, se vê desprezada pelos seus próprios docentes, veja, gradualmente, a responsabilidade de o seu ensino transitar para colegas vindos de outras áreas.

Experimentalismos vários confirmam, ao longo das últimas duas décadas, o raciocínio daqueles que consideram que a disciplina de Português pode, no limite, não necessitar de professores de Português. Dois exemplos magnos: ter-se sujeitado milhares de alunos, entre 2002 e 2014 (ano em que a Literatura veio a ser reconduzida ao seu lugar central na lógica de ensino do Português, de que é a essência), à aprendizagem dos então chamados “textos transaccionais” (actas, currículos, regulamentos, ofícios, cartas comerciais...) e, espelhando bem o projecto oculto de muitos decisores educativos, considerar que o ensino da Língua Portuguesa pode dispensar o estudo do texto literário.

O argumento é sempre o mesmo: ir ao encontro dos interesses dos mais jovens de maneira a que possam estar motivados para a leitura. Não se concebe que um aluno, justamente por ignorar o seu património literário, se sente fascinado face à poesia de Camões, ou dos trovadores; se sente desafiado perante o mundo relatado por Fernão Lopes, ou até mais apto a compreender o nosso tempo se souber – ao nível do texto – inferir quanto Cesário ou Pessoa antecipam esta nossa época, também ela entregue aos tubarões do progressismo.

Pois é justamente em nome da qualidade do ensino do Português no secundário que se deve recusar que outros colegas, oriundos de outras áreas, leccionem esta disciplina. A questão não é senão de mera e elementar justiça: colegas que tiveram formação em Estudos Literários e Literatura Portuguesa, mas que leccionam no 2.º ciclo, estão impedidos de leccionar Português no secundário. Mas os de línguas estrangeiras poderão fazê-lo. Advoga a DGAE que apenas “desde” que tenham “estágio pedagógico habilitante” e “adequada formação científica”. Pergunto-me se, perante um soneto de Camões, será fácil a um colega de inglês ou de francês (há quantos anos leram Camões? Que ensaios a respeito releram para sua nova responsabilidade?), descortinar a estética do maneirismo, os elementos retóricos ocultos de que, não raro, Camões se serviu para tecer a sua estética do oxímoro...

Se, em virtude do pouco tempo disponível e da quase absoluta ausência de leitura de crítica e ensaio, muitos são os que, leccionando Português, continuam a seguir uma explicação dos textos próxima das sempre equívocas leituras biografistas – imagine-se o obstáculo que será o soneto “Cá nesta Babilónia”, ou (o mais escolar) “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, para um colega que, desde a licenciatura (ou desde o seu secundário!), não lê a poesia de Camões. E quem diz de Camões, pode dizer da poesia de quase todos os outros autores insertos no programa do 10.º ao 12.º anos. Falo de poesia, mas e o teatro? Ou o romance? Que abordagem há, nas línguas estrangeiras, ao texto literário? Por acaso, entre o 7.º e o 9.º anos, há conteúdos literários em inglês e francês? É de uma total incoerência esta decisão.

Além de, muito provavelmente, os colegas das línguas estrangeiras, na sua boa vontade, poderem vir a cair no experimentalismo pelo experimentalismo, substituindo os textos literários portugueses por outros textos que, apesar de escritos em português, estão mais de acordo com o modus operandi das disciplinas para que foram formados (lá iremos cair em testes sobre temas, consolidar-se-á a tendência para respostas curtas ou testes com cruzinhas, numa infantilização soez de alguns instrumentos de aferição de competências: veja-se a charada dos testes orais...), coloca-se uma questão de rigor científico. Noções de periodologia literária, de conceitos operatórios para compreender a génese e a evolução de dada obra (Os Maias, por exemplo, não podem ler-se sem o estudo aprofundado das noções de ‘biópsia’, segundo Cleonice Berardinelli, e sem o entendimento do que foi o ‘anti-britanismo’ para a Geração de 70, e mesmo para Cesário...), terão os colegas de línguas estrangeiras a “adequada formação científica"?

Por tudo isto é que me parece que, no horizonte, o que se pretende é transformar o Português numa disciplina onde vale tudo, sobretudo se esse tudo for feito por todos em nome de um imenso nada... Não sei como reagirão aqueles que, mais críticos e atentos, perceberem que o hábito pedagógico nas disciplinas estrangeiras não passa pela análise e comentário de texto... Pode suceder que um colega de francês ou de inglês pergunte “como dar” a crónica de Fernão Lopes, ou como motivar para o Frei Luís de Sousa... Se for culto, pode lembrar-se de estabelecer alguns paralelos entre essas obras portuguesas e outras daquelas latitudes literárias (Garrett refere Shakespeare a propósito do seu drama...), mas é em termos de cultura literária que tudo periga...

Lembro, para que conste, palavras sábias de Jacinto do Prado Coelho: “Ensinar a ler (a ler integralmente e em profundidade) – eis, repito, em qualquer grau de ensino, o objectivo fundamental das disciplinas literárias” (Ao Contrário de Penélope, Lisboa, Bertrand, 1976, p.63). Ora, é justamente isso que está sempre em causa no nosso famigerado caso de professores de Português. Em abono da verdade, como poderão outros ensinar a ler se toda a aprendizagem pressupõe uma transmissão de conhecimentos? Análises apressadas, pouco informadas, uma orientação lateral ao texto e não dentro do texto, eis o que nos espera se tão iluminada ideia vingar. Com uma última consequência, não despicienda: e não fomentará esta solução, entre colegas de profissão, um certo mal-estar?

Enfim, as contradições são tantas, mas já tão banalizadas, que não será de estranhar se daqui a poucos anos os professores de Português puderem (com a devida formação científica) leccionar Física e Química, ou Geometria Descritiva. Absurdo por absurdo...

Fonte

Texto da autoria do poeta, crítico literário e professor António Carlos Cortez, que o assinou no jornal Público em 22/01/2020. O texto segue a norma ortográfica de 1945.

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