Não há nem haja dúvidas de que, daqui a alguns anos, muitas (das) expressões, construções frásicas, acepções lexicais e alterações semânticas, testemunhadas hoje no português – e consideradas “incorrectas” –, se tornem, num futuro desconhecido, pacatos cidadãos da língua portuguesa e poderão adquirir o mesmo estatuto que muitos vocábulos ostentam desde muito cedo, antes mesmo da partida de Camões para o além.
Sandra Duarte Tavares [aqui no Ciberdúvidas] mesmo sem querer assumir responsabilidades, confirma essa hipótese. «Água mole em pedra dura tanto bate até que fura», diz a linguista, referindo-se ao facto de que, muitas vezes, «é com o erro que a língua dá um salto e evolui». E apresenta exemplos comprovadamente linguísticos. «Há incorrecções linguísticas de vária ordem – ortografia, fonética, sintaxe – que passam a ser formas atestadas na língua, como é o caso da palavra ‘bêbado’, que era uma incorrecção, mas que hoje está atestada na língua, em paralelo com ‘bêbedo’, que era a forma correcta».
Por outras palavras, as coisas hoje ainda são, correctamente, um ‘círculo vicioso’, mas daqui a pouco poderão evoluir para, o que ainda não está atestado na língua, um ‘ciclo vicioso’. Um dos meus amigos no Facebook diz que «errar , é humano».
Será mesmo humano colocar uma vírgula entre o sujeito e o predicado? Poderá um dia essa água de Sandra Duarte Tavares ser tão mole ao ponto de permitir que os elementos essenciais da oração sejam separados por um intruso? Não sei. Mas o certo é que a língua é dos falantes e não das gramáticas.
Mas tal como no trânsito rodoviário, aos donos pertencem os carros, mas todos devem obedecer ao Código de Estrada para evitar colisões, acidentes e, para resumir, pôr ordem nas estradas. O mesmo acontece com a nossa língua. Tem de haver ordem.
A língua pertence ao povo – no caso do português, os povos – que a fala(m), que a usa(m), mas ainda cabe à gramática a responsabilidade de criar fronteiras e limites, para que cada um de nós não saia para aí a falar de forma arbitrária, atropelando todas as regras, criando mesmo situações de incompreensão. Somos humanos, sim. Mas tenho dúvidas de que «errar , seja humano».
Como já disse a linguistica, a tradição normativa recomenda que se escreva «errar é humano», sem vírgula. ‘Errar’, apesar de morfologicamente ser um verbo, funciona como sujeito desta oração, seguido, sem qualquer interrupção, de ‘é humano’, o predicado. O sujeito e o predicado, que, segundo as normas gramaticais, são inseparáveis, a menos que alguma circunstância obrigue ao contrário.
Cf. 5 bons motivos (e 10 regras) para usar corretamente a vírgula
N.E. – O não uso da obrigatória vírgula no vocativo – seja quando ela representa um chamamento, um apelo, uma saudação ou uma evocação* – generalizou-se praticamente no espaço público português, dos órgãos de comunicação social à publicidade .Por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui ou aqui. Uma incorreção várias vezes esclarecida no Ciberdúvidas – vide Textos Relacionados, ao lado –, assim como noutros espaços à volta da língua portuguesa.
Cf. Entre outros registos: Vocativo + Vocativo: uma unidade à parte + O uso da vírgula no vocativo, Vocativo – uma questão de vírgula + A vírgula do vocativo – Exemplos de vocativo no início, no meio e no fim da frase + 5 bons motivos (e 10 regras) para usar corretamente a vírgula.
* Por regra, no discurso direto e, geralmente, em frases imperativas, interrogativas ou exclamativas.
Crónica publicada no semanário luandense Nova Gazeta, no dia 28 de maio de 2015, na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.