No contexto da querela sobre o Acordo Ortográfico, o deputado português Carlos Enes recorda a posição tomada pela poetisa Natália Correia num debate parlamentar ocorrido em 1991 (texto publicado nas páginas da Antena 1 - Açores).
Na sessão em que se discutiu o Acordo Ortográfico (AO) na Assembleia da República (Maio de 1991), Natália Correia assumiu a defesa do mesmo, em nome da bancada do Partido Renovador Democrático (PRD), liderado pelo general Ramalho Eanes.
A irreverente deputada começou por realçar que o AO não representava uma unificação ortográfica, mas apenas alterações aproximativas, defendendo que a eliminação de consoantes mudas só favorece a aprendizagem tanto por crianças como por alunos estrangeiros. Contestando que representasse uma submissão ao Brasil, cita a esse propósito a dupla acentuação de palavras como António/Antônio, fenómeno/fenômeno, lembrando aos tradicionalistas que as palavras de timbre fechado terão sido levadas pelos portugueses e que continuam a pronunciar-se, por exemplo na ilha de S. Miguel: “não me venham com o terror do “Antônio”, porque esse foi cá gerado e por cá continua”.
Fazendo um pouco de história dos antecedentes do AO, aponta uma série de nomes da cultura portuguesa que participaram no I Simpósio da Língua Portuguesa Contemporânea, realizado em Coimbra em 1968. Esse grupo de professores reconheceu as vantagens da unificação de uma ortografia luso-brasileira, cujas propostas serviram precisamente de base ao AO. Advogavam a queda das consoantes mudas, já abolidas no Brasil e parcialmente conservadas em Portugal, “aumentando apenas a lista dos vocábulos cujas consoantes facultativamente se pronunciam – por maioria”; no que respeita ao acento circunflexo na distinção dos homógrafos, que havia sido abolido em Portugal, devia prevalecer a nossa regra, mas deixando a faculdade de o usar, para evitar equívocos; de igual modo deviam ser eliminados os acentos gráficos em esdrúxulos ou proparoxítonos, para evitar divergências entre as duas escritas.
Estes princípios obtiveram a convergência de opiniões de ilustres académicos portugueses, como Hernâni Cidade, José Pedro Machado, Lindley Cintra, Paulo Quintela, Óscar Lopes e Vitorino Nemésio. Algumas destas pessoas passaram a estar contra o AO, porque foram introduzidas modificações, mas Natália questiona; “É claro que toda a gente pode mudar e, se calhar, até tem interesse nisso, mas a verdade é que queremos saber quando tiveram razão: se nesta altura ou anteriormente”.
Na opinião dos oposicionistas o Acordo tornava-se dispensável, quanto aos países africanos lusófonos, porque eles falam como nós. A poetisa discorda dessa leitura e dá exemplos de desvios nos países africanos lusófonos que se tornariam imparáveis caso não haja uma norma definidora. Mas não aceita a crítica de que há concessões ou submissão ao Brasil: “é para estranhar que os que se orgulham de termos levado a outros continentes a língua portuguesa rejeitem uma iniciativa que visa evitar a desagregação do português no espaço mundial da lusofonia, conquistando-lhe um estatuto de língua oficial nos diversos fóruns internacionais e prestigiando-o como suporte de transmissão de uma cultura riquíssima de matizes etnográficas”.
Como escritora, Natália Correia advoga que é uma criadora da língua, com seus direitos “e eu não admito que alguém mos tire”. Mas como cidadão, mulher, defende “uma cultura e uma língua que é falada por 200 milhões e que não a quer ver transformada num fóssil ou numa arqueologia qualquer, que é aquilo que os contestatários deste Acordo, no fundo, podem provocar, quer apenas pensando ou conscientemente desejando”.
Cf. Reações e sínteses noticiosas sobre a Resolução 890/XII/3.ª