A propósito das referências ao mar no léxico português, Ana Sousa Martins dá exemplos, mas adverte que o discurso sobre a riqueza expressiva da língua portuguesa pode ser ingénuo e contraproducente. Crónica transmitida na rubrica "Palavrar" dos programas Língua de Todos (RDP África) e Páginas de Português (Antena 2).
Se bem se lembram, há uns anos havia a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (1986-2002) que tinha por função coordenar as celebrações dos descobrimentos. Atualmente o tempo não é de festa, mas não é menos meritório fazer notar que afinal celebramos a grandeza do povo que fomos todos os dias quando falamos e usamos expressões que têm origem na arte de marear. Dizemos, por exemplo:
que o negócio foi «por água abaixo» ou que «vai de vento em popa», ou «na crista da onda»;
ou que «andamos à deriva» ou a «remar contra a maré», mas que esperamos «chegar a bom porto»;
e que vamos de «rota batida» para algum lado;
e que procuramos «não meter água»;
quando comemos qualquer coisa que nos faz mal, podemos ficar «mareados»;
e que quando nos zangamos, temos vontade de atirar com qualquer coisa «pela borda fora».
Estas são algumas das expressões mais frequentes e óbvias.
Mas as palavras, não expressões, palavras mesmo, passam mais despercebidas.
Por exemplo: o verbo abordar que tem como primeiro significado encostar um navio a outro para o assaltar.
Ou então o adjetivo emproado que é um adjetivo derivado de proa, a parte da frente do navio.
Falo nisto porque é um facto, é curioso e interessante, digno de ser estudado e divulgado. Mas fazer disto a quinta-essência da língua e cultura portuguesas e, por arrasto, invocar ano após ano, década após década, a excecional grandeza e capacidade expressiva da nossa língua é ingénuo e até contraproducente.
É ingénuo porque a permeabilidade aos termos náuticos é uma características de todos os povos e línguas do Mediterrâneo, e depois os espanhóis, os ingleses, os holandeses também têm palavras e fraseologias que entraram na sua língua por via deste laço contínuo com o oceano.
É contraproducente por causa da crença de que a língua portuguesa de tão grandiosa em história e cultura não precisa de ser divulgada nem ensinada de modo eficaz e sistemático, acreditando-se que ela se está a impor naturalmente e que se está a expandir na Internet e que os estrangeiros, de tão bela que é a nossa língua, se vão naturalmente interessar por ela.
Quando vou a congressos sobre a Lusofonia e a presença do português no mundo, vem-me sempre à memória uma canção do Sting, um hit dos anos 80: «The russians love their chidren too»*.
De facto, os espanhóis, os ingleses, os franceses etc. também amam a língua deles – fazem é alguma coisa de sistemático e eficaz para que a sua língua se afirme no mundo.
* «Os russos também gostam dos seus filhos.»