Porque se usa lindamente, mas não "bonitamente"? É esta, fundamentalmente, a questão discutida pelo escritor e professor universitário Fernando Venâncio, em crónica publicada no número de novembro de 2013 da revista Ler.
A elasticidade da mente ouvinte é proverbial. Entendemos mais do que poderia estritamente supor-se, chegamos até a entender bem o que nos dizem mal. Mas nem tudo é possível num idioma, e os maiores limites surgem do lado da produção. Dizemos lindamente, mas já achamos belamente linguagem artificiosa, e nunca dizemos "bonitamente". Ou só por gozo.
Nada obstaria, porém, a que esse advérbio fosse corrente, e que – é só um exemplo – uma bonita canção pudesse ser "bonitamente" cantada. Nada obstaria, igualmente, a que uma miúda gira aparecesse "giramente" vestida. Ou que um tipo fixe se comportasse "fixemente". Pensando bem, qualquer pessoa deveria poder falar "engraçadamente", ou dançar "catitamente". Mas não. Nunca nos exprimimos assim, e o mais certo é que jamais venhamos a fazê-lo.
O estranho é que ninguém titubeia perante airosamente, ou elegantemente, gentilmente, graciosamente, primorosamente. E o facto é que até "engraçadamente" foi habitual no século XVII. Porque é que, então, esses outros casos, que se diria sinónimos, ou muito comparáveis, são excluídos do uso?
Tudo faz pensar que elas rangem, ou manquejam, essas formas que, como por instinto, recusamos. Em "giramente" ou "fixemente", deve inibir-nos o contraste entre o descontraído de giro ou fixe e a pomposidade do advérbio. Na recusa de "bonitamente", funcionará uma quase metafísica: as coisas são, ou não, bonitas, mas não existe uma «maneira» de sê-lo.
E repare-se bem: nem o próprio lindamente se deixa sempre reconduzir a lindezas. Podemos, é certo, cantar «lindamente», vestir-nos «lindamente», estar «lindamente» instalados, falar «lindamente» francês. Mas a semântica começa a resvalar em dormir «lindamente», em dar-se «lindamente» com alguém. E o terreno é já deveras movediço em «Safei-me lindamente», «Pagou lindamente a multa» ou «Estás lindamente enganada».
Tudo sempre com belos sorrisos? Nada o garante.
Crónica publicada com o título "Lindamente" no número de novembro de 2013 da revista Ler. Manteve-se a ortografia usada pelo autor.