Nesta crónica, publicada no semanário angolano Nova Gazeta, à volta dos usos do português no seu país, Edno Pimentel aborda uma particularidade do português que é transversal às variantes do nosso idioma: a não linearidade dos processos linguísticos na história da língua portuguesa, levando a que palavras como advogado e advocacia, a par de outras mais, tivessem uma evolução diferente, embora tendo uma etimologia comum.
Poucos da família, infelizmente, tiveram pouca sorte. Se era, de facto, sorte, e pouca, de que careciam os Caunda, pois, nenhum deles conseguiu tornar-se naquilo que é o actual desejo de Mimi: «Ser advogada».
O pai, ainda muito cedo, não pôde continuar a "afiar o lápis" por muito mais tempo porque o status quo de há 30 anos não lhe permitiu fazê-lo. A mãe, pelos mesmos motivos, optou pelo bombó com jinguba à porta de casa para garantir alguma alegria aos filhos que órfãos se tornaram.
Mas essa realidade de "menos um" na família, menos o cabeça por sinal, não travou a vontade de Mimi e dos seus irmãos de ir à escola, às aulas de explicação do professor Morais, que dos alunos recebia apenas carinho e muito boas notas. Foi nas aulas de explicação do professor Morais em que Mimi aprendeu de cor a tabuada dos 11 e dos 12. Aprendeu e ensinou aos colegas a técnica dos "noves fora", decorou "A vida na comuna I e II", "Oriana e o peixe", "O sonho do Pedro", entre outros textos, porque acontecesse o que acontecesse, estudar ainda era um dever revolucionário.
E Mimi queria fazer e viver a revolução estudando a sério, destacando-se sempre com as melhores notas, participações, com muitas questões, dúvidas e melhor caligrafia. O irmão, Zé-Piqueno, xará do avô, pai do seu falecido pai, queria ser arquitecto para construir uma casa «bem grande» para a mãe e os irmãos.
Tudo ficou mesmo só pelo sonho. A matemática do professor serviu apenas para ajudar a mãe nas contas do bombó e os desenhos de Zé-Piqueno para pichar paredes e tatuar. «Não consegui entrar no MACARENCO para fazer Construção Civil», reclama tentando justificar o seu acto de vandalismo.
Aos 37 anos, Mimi, hoje com cinco filhos, espera, com a experiência do bombó da mãe, dar-lhes o que não pôde receber, espera que a sua filha mais velha faça o que ela sempre quis fazer. «Tens de estudar advogacia para poderes recuperar a pensão do vosso pai, ouviste?», implora a mãe Mimi.
Para a menina, que já atingiu a puberdade, estudar Direito num mundo torto como o nosso é muito difícil. Por isso é que até a própria palavra foi corrompida.
Embora advogado seja escrito com <g>, a especialidade (o curso) é escrita com <c>, advocacia, pois ocorreu o processo de sonorização, em que a consoante surda, neste caso [k], representada pela letra <c>, é transformada em sonora [g]. Este processo ocorreu também em amicu˃amigo, aqua˃água, etc.
Outros textos de Edno Pimentel sobre o português em Angola
In jornal Nova Gazeta, de Luanda, publicado em 15 de agosto de 2013 na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.