A língua é a única herança que me coube em sorte, e não é pequena, como se sabe. No meu caso, tal herança, em mais de um sentido, é materna. É com estes vocábulos que interrogo a memória, num desejo insensato de preservar certos instantes; e, como já todos sabem, a minha memória está cheia de rumores de águas, também destas águas; está cheia do branco dos muros, também destes muros; está cheia da poeira dos caminhos, também destes caminhos. Porque durante a infância, todas as vozes, todos os cheiros, todos os sabores pertenciam a estas terras, terras com nomes palpáveis: Póvoa, Atalaia, Castelo Branco, Fundão, Alpedrinha, Monfortinho, Castelo Novo, Covilhã; nomes "porosos", como lhes chamei um dia, nomes que se deixam atravessar pelas maternas águas da memória. E se também eu, como tantos outros, aos sete anos emigrei com minha mãe, primeiro para Castelo Branco, depois para Lisboa, não havia férias grandes que não regressasse ao sol destas eiras, à sombra destas oliveiras, cerradinha como nenhuma. E assim foi até ao fim da adolescência, tempo mais que suficiente para imprimir no meu espírito, ou na minha alma, ou na minha carne, ou lá onde isso aconteceu, uma imagem que, mesmo quando nimbada de melancolia, é sempre uma imagem de luz quente e feliz. É à claridade tais instantes — esses a que Goethe, pela boca de Fausto, suplicava que parassem, por serem tão belos —; é essa a claridade, dizia eu, que religados os meus primeiros versos, porque não fui eu apenas quem nasceu nestes lugares, também a poesia teve aqui o seu nascimento primeiro — a que recebi da boca de minha mãe, antes de nenhuma outra, com a música dos romances da Silvaninha e do Gerinaldo, ou essa com que deparei no primeiro livro que me puseram nas mãos, o "Hino do Amor" do João de Deus, aos seis anos, já na escola, depois de ter aprendido o bê-á-bá com D. Alexandrina, na Póvoa da Atalaia.
Poesia, Terra de Minha Mãe, in Obra Eugénio de Andrade (1923-2005), Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 1995.