É bem possível que o mandarim venha a ser a língua franca. Neste momento, esse estatuto é ainda do inglês, por via do domínio económico, científico e cultural dos EUA, ao longo do século XX. Há muito que se reconhece que um bom domínio do inglês é uma competência básica do desempenho profissional e que essa competência não concorre em nada com o bem falar e o bem escrever (n)a língua materna.
Enquanto Portugal não ultrapassa o défice de literacia em português e não arranca no ensino eficaz do inglês, vamos assistindo a uns arremedos: primeiro foi o "Allgarve", com o ministro da Economia, na Sic, a explicar ao país que "all", em inglês, quer dizer "tudo"; agora é o "Alkantara Festival". Note-se que o folclore anglófilo não está apenas no K anglo-saxão ou na supressão do acento circunflexo, mas também na sintaxe. O complemento nominal antecede o nome: é "Alkantara Festival" e não "Festival de Alc(k)antara".
Mas se o presente é em inglês, o passado foi em árabe. Estima-se em cerca de mil as palavras do português de origem árabe: ceroulas, tremoço, saloio, enxaqueca, etc., etc. As de mais fácil reconhecimento são as que começam por al- (al é o artigo, que em árabe aparece colado à palavra que determina). Com esta formação, temos muitos topónimos: Alcácer, de al-qaçr: "o castelo"; Almada, de al-ma'adanâ: "a mina"; Albufeira, de al-buhairâ: "a lagoa que nasce no mar"; Algarve, de al-gharb: "o oeste"; Alcântara, de al-qantarah: "a ponte de madeira".
Mas não se pense que o "Alkantara Festival" tem aversão à etimologia. Há um toque de erudição no texto de divulgação do evento: «"Alkantara" significa "a ponte" em árabe. (…) É a nossa missão construir pontes entre artistas, culturas (…) Estimular e internacionalizar a criação artística portuguesa.»
Só é pena não se perceber que para internacionalizar a cultura nacional não é preciso apagar os vestígios de outras culturas na língua portuguesa.
Artigo publicado no semanário Sol de 31 de Maio de 2008, na coluna Ver como Se Diz